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A chegada do cordelista Zé Saldanha no céu

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Gutenberg Costa [ advogado ]

É  desta forma que os poetas da nossa literatura de cordel, assim intitulam seus folhetos versando sobre a vida daqueles que são merecedores deste privilégio espiritual pós morte. Os cordelistas que seguem o exemplo da religião Católica, logo canonizam os que fizeram o bem aqui na terra, onde vivem tantos que preferem semear o mal… José Saldanha Meneses Sobrinho, nascido a 23 de fevereiro de 1918, no município de Santana do Matos, no Rio Grande do Norte. Era filho do pequeno fazendeiro Francisco Saldanha da Silva e da costureira Rita Regina de Macedo Saldanha. O menino José, muito esperto e curioso, foi vaqueiro, agricultor, almocreve, puxador de gado, aboiador, violeiro, poeta repentista, sapateiro, xilógrafo, cordelista, vendedor de folhetos em feira e artezão de couros. Foi também fabricante de aguardente, sapatos, doces, queijos e violas. Empresário no ramo de sapatos e cachaça. Dono de mercearia e escritor. Como se vê, em matéria de trabalho e cultura, o poeta Zé Saldanha em vida ‘só não fez chover, mas bem que preparou o tempo’. Além de exímio declamador era também um contador de causos e um grandioso memorialista de seu tempo. Quem como eu, teve a sorte de cruzar seu caminho, ouviu e  aprendeu muitos ensinamentos e saberes, que só os professores da universidade da vida os têm guardados na memória a repassar-nos. Quando conheci o mestre Zé Saldanha, muitos de seus netos nem haviam nascidos. Logo fui recebido em sua casa  e adotado como mais um filho. Lá na sua mercearia em Candelária, quase todas as tardes tomava um gostoso café e recebia das mãos de dona ‘Jove’, um pão francês ainda quentinho recheado com manteiga e queijo do seridó. E seria uma imensa desatenção não receber este mimo de dona Jovelina Dantas de Araújo Saldanha. 

Dona Jove o dividia com a dona poesia e desta não sentia ciúmes, pois quando chegava um freguês na sua bodega puchando uma prosa sobre viola ou cordel, o seu marido saia correndo para a conversa e esta despachando os outros compradores tomava conta do comércio, que ajudava na educação de seus 9 filhos. Rosáfico, Altamira, Terezinha, Neto, Rita, Robson, Reneide, Rosemberg e Renilda. Sua filha Reneide vendo que seu pai distribuia com os amigos e visitantes toda a sua produção literária, tratou de imediato de selecioná-la e organizá-la para que a mesma não viesse se perder no futuro, pois o velho Zé Saldanha, não queria ganhar dinheiro com sua poesia, queria era ganhar novos amigos e leitores. Por tal motivo é que tive um grande trabalho, com três dia socado em sua casa, para achar e juntar sua produção cordelística a pedido da editora Hedra, de São Paulo, para lançá-lo nacionalmente com sua biografia e antologia na famosa coleção “Cordel”. O poeta Zé Saldanha foi o escolhido em 2001, por esta editora para representar o Rio Grande do Norte, antes quase que desconhecido no cenário nacional da Literatura de Cordel. O poeta seridoense ficou feliz com meu nome como seu biográfo, indicado pelo saudoso amigo Joseph Luyten, doutor pela USP, a citada editora paulista. No dia do lançamento aqui em Natal, Saldanha, sorria e beijava os livros de tanta emoção e alegria dizendo-me: “Agora posso morrer satisfeito, pois graças a você o mundo vai saber de agora em diante a minha história”.  Vendeu milhares de folhetos como poeta repórter quando contou a história do trágico acidente, ocorrido em 1974, em Currais Novos, durante uma procissão na noite de 13 de maio, onde faleceram 25 pessoas, atropeladas por um ônibus sem freio que desceu a ladeira aonde estavam os fiéis Católicos. Também historiou em seus folhetos dois três tragédias na sua região, com um acidente de um caminhão, afogamentos em um açude e o assassinato do amigo e também poeta Zé Milazez, cujos versos demonstram o apreço pelo amigo e a revolta pelo assassino deste: “Matou José Milanez/Nosso poeta  benquisto/Que foi homiciado/Pelo destino imprevisto/Que matou como mataram/ Os Santos  apóstolos de Cristo..”. Publicou milhares de folhetos em vida, muitos deles perdidos, pois quando ia procurar a cópia original já não se encontrava em seus arquivos e diante de minha pergunta pelo desaparecimento do folheto, respondia-me rindo: “Eu acho que dei a um portador que veio aqui e pediu-me o folheto”. Alguns destes foram recuperados pela memória tempos depois. Escreveu cordéis pequenos, romances e almanaques. Na área do gracejo e humor publicou muita coisa engraçada, ficando nacionalmente conhecido o seu folheto/poema: “Matuto no Carnavá”, sendo depois tranformado em peça teatral. Quando  o jornalista e apresentador Tarcísio Gurgel o convocou para o seu depoimento ao programa da TV Universitária ‘Memória Viva’, o poeta Saldanha, não teve dúvidas e convidou para auxiliar na entrevista dois grandes amigos: José Lucas de Barros e Gutenberg Costa. O que os telespectadores não souberam é que eu chamado de surprêsa, quase não podia falar por causa do meu palitó velho e de tão apertado que estava, se demora mais um pouco teria morrido sem folêgo…  Em seu último aniversário dos 93 anos, o velho amigo poeta estava com o mesmo senso espirituoso de sempre, alegre e declamando seus versos aos presentes. Quando lhe disparei a pergunta em forma de pedido: Nos dê o prazer de estar juntos na sua festa dos 100 anos, o mesmo em cima da bucha responde-me filosofando: “O futuro só Deus é quem sabe!”. E Deus, com certeza estava tão ansioso de ouvir seus poemas, que o chamou no último dia 9 de agosto. Agosto, mês de luto da poesia popular do RN. Folheando um de seus folhetos com emoção de ter pardedi um pai, leio os seguintes versos: “Quando vagar a notícia/Que Zé Saldanha morreu/ Alguém diz até chorando/Que o Rio Grande perdeu/Um Zé que nunca mais/Vem outro Zé como eu…”.

E para contar em rimas cordelescas como Zé Saldanha, chegou no Céu e numa grande festa foi recebido com abraços de Chico Traíra, Severino Ferreira, Chagas Ramalho, Onésimo Maia, Zoroatro Rangel, Zé Milanez, Manoel Macedo Xavier, Pedro Jacob, Elizeu Ventania e tantos outros, só tendo muita poesia e sabedoria no quengo. Duas coisas que invejo dos poetas populares. Zé Saldanha deixou em seu rastro aqui na terra, uma bela história de vida, história que será contada em cada canto, por cada amigo, leitor ou familiar, esteja aonde estiver-mos. 

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