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A civilização singular do Seridó

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A Festa Literária da Praia de Pipa começou com uma conversa sobre “A Literatura em Oswaldo Lamartine”. O tema mereceu considerações dos escritores Paulo Bezerra, Humberto Hermegenildo e Paulo de Tarso Correia de Melo. Paulo Balá embrenhou-se mais pelo sertão do Seridó, que é o de Oswaldo e o seu também, e lá colocou a obra do grande sertanista, primo de sangue. Vou dividir a fala de Paulo Bezerra em duas partes. Transcrevo hoje a primeira. No outro domingo, prometo a segunda. Vamos lá, olhares e ouvidos atentos:

– Eu devo dizer que estou aqui sujeito que nem jumento empurrado pra dentro d’água, mas me deu na veneta de vir, tangido pelo chamado, para não falar em imposição, do amigo Dácio Galvão, a quem não devo faltar. Bronco numa danação de coisas, inclusive em literatura, não esperem de mim discorrer sobre o tema sem embaraço, que nem água franca que corre em cacimba de areia grossa. Assim, com tais desculpas, deixem-me dizer o que eu acho e devo.

– O sertão, uma terra distante, pisada pelo caboclo-brabo, deu de ser cobiçado que nem moça donzela, pelos marinheiros chegados de longe, do além-mar. É que no litoral, outros logo se acomodaram no cuido da cana-de-açúcar para mover engenhos, criando até uma nobreza luxenta, sendo preciso, pois, demais gente para tanger o gado em busca dos sertões de dentro, propício à criação do bicho de rasto-feme. A via de acesso a esses homens eram os caminhos d’água às vezes cheios, às vezes secos, margeados por terras de aluvião e pela pastagem nativa de qualidade. Um sertão de muita pedra e muita luz, de noites enluaradas ou de céu estrelado, mas em tudo um sertão bruto e sadio.

– Um desses caminhos foi o rio Seridó correndo pelo boqueirão das Parelhas, recebendo entre outros tantos o Acauã, afluente fértil, chamado por cronista do outro século de “o Novo Nilo”; outro foi o curso do rio Espinharas, nascido também em terras paraibanas. Nas vertentes de ambos o boi traquejado pelo vaqueiro foi criando currais, daí a briga pela terra entre invasores e índios – a chamada Guerra dos Bárbaros (1687-1697) da qual quem não morreu restou para castear  com os brancos peninsulares e com os negros subjugados e trazidos nas caravelas, daí porque em todos nós, sertanejos daqueles ermos, corre nas veias o sangue das três raças.

– Os que de longe vieram, de longe trouxeram vivências e crenças e se acomodaram com as crenças e vivências dos nativos, todos a impor e aceder ao longo do tempo, modelando, por fim, uma sociedade com obrigações e deveres, onde se prezava a educação e a saúde, donde os mestres-escola e as meizinhas. A religiosidade trazida pelos padres nas desobrigas respaldou-se depois de 1748 com a criação da freguesia da Gloriosa Senhora Sant’Ana do Seridó, desmembrada da do Piancó. O padre Francisco de Brito Guerra (1777-1845), senador do Império, conseguiu no ano de 1831, o decreto instituindo os limites do Seridó, mas, em 1934, a Paraíba sentindo-se subtraída no seu território pediu a suspensão do mesmo que, confirmado em 1835, pôs fim à encrenca. Também as populações de Acari e Caicó, os dois maiores municípios de então, se manifestaram em abaixo-assinado contra a mudança. Não havia porque mudar os marcos.

– O topônimo Seridó, no entendimento de Coriolano de Medeiros e Luís da Câmara Cascudo (1896-1986), vem do linguajar dos tapuias transcrito como “ceri-toh” e que quer dizer “pouca folhagem e pouca sombra”, condizente com aquele mundo. Seja porque os colonizadores tenham sido cristãos-novos, descendentes de judeus, os termos “sarid” e “serid”, do hebraico, um quer dizer “sobrevivente” e outro “o que escapou”, vindo a ser a mesma coisa, pois, tanto faz dar na tábua do queixo como no pé do ouvido que o baque é o mesmo. E ainda “she’erit” no sentido de “refúgio Dele”, o dele, está bem visto, escrito com letra maiúscula. Já espinharas, termo também oriundo do falar tapuia, seria corruptela de pinhares que por sua vez seria de pinhais, lugar onde o pinhão – um arbusto – é abundante, e assim pinhão – pinhais – pinhares – espinharas. Como o rio Seridó e o Espinharas se juntaram formando o caudal do rio Piranhas, descendentes dos seus colonizadores também se uniram para escrever uma história.

– Em Serra Negra do Norte, na beira do rio Espinharas o Coronel Clementino Monteiro de Faria (1842-1922), da Fazenda Carnaúbas, casou com Paulina Umbelina dos Passos (1849-1938) e no Acari, na margem do rio Acauã, o Coronel Silvino Bezerra de Araújo Galvão (1836-1921), da Fazenda Ingá, casou com Maria Febrônia de Araújo Galvão (1838-1908), sua prima carnal. Desses casamentos, de um nasceu Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956) e do outro Silvina Bezerra de Araújo Galvão (1880-1961) e desta união foi que veio ao mundo Oswaldo Lamartine de Faria, em Natal, na seca danisca de 1919, mas que no ano de 2007, decidido, caiu nos braços da Moça Caetana, e partiu.

– Ora, os parentes próximos e remotos dele e outros tantos povoadores de linhagens diversas, como apego e trabalho foram os que fundamentaram as bases do que veio a ser o Seridó, primeiro abrindo os caminhos por onde pisou o boi tangido pelo vaqueiro e daí pra frente levantando casas de duas águas com alpendre ventilado; cuidando dos currais com cerca de pau a pique e mourões de aroeira nas porteiras de correr, aos pés dos quais enterravam os imbigos caídos e os abortos; expandindo o criatório do gado que deu origem ao ciclo do couro que nem o liforme do vaqueiro que, até hoje, protege o corpo do homem da caatinga espinhenta; levantando cercas de pedra – uma herança ibérica – e cercas de varão antes que o arame farpado chegasse; prendendo as águas caídas do Céu para tê-las nas quadras secas, criando a engenharia dos açudes; plantando o caroço do feijão, a semente do jerimum e a rama da batata nas vazantes dos rios e dos açudes; capturando animais silvestres a lhes servir de alimento; guardando para o amanhã a fartura de hoje; das plantas nativas colhendo seus frutos e das abelhas silvestres o mel, estas destroçadas pelo homem e aqui recordo os cortiços de jandaíra que o meu avô Félix (1862-1937) cultivava à sombra de frondosa quixabeira no seu sítio Pendanga; criando ferros para marcar o gado; com as facas incisivas fazendo sinais nas orelhas sobretudo da miunça; erguendo as primeiras capelas e abrindo as primeiras escolas para que seus filhos nem fossem analfabetos nem pagãos.

– E assim por diante… De modo que a inteiração das três raças com o meio, ali em cada uma um padrão cultural, e aqui, no mínimo, anos de fartura e anos de precisão, resultou no surgimento de um tecido social que se distingue pelo apreço à família, aos preceitos da Igreja, às leis da Justiça, ao bem-estar social, com a política a ser exercida segundo os ditames da ética e da honestidade, por homens de caráter. Daí as cidades limpas com seu povo prestimoso e educado; os costumes, a alimentação e o linguajar com velhas palavras de ontem usadas no cotidiano de hoje. E assim o Homem e o Tempo depuraram uma civilização que, pelas circunstâncias, só poderia nascer ali, no semiárido mais brabo, ensolarado e quente e, por isso mesmo, sem arremedo nesse mundo de meu Deus, a singularíssima civilização do Seridó.

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