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A dádiva do encontro

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Nei Leandro de Castro
Escritor

No caos em que se encontram mergulhados os meus livros e papéis, encontrei uma preciosidade que julgava perdida: uma pasta contendo 12 poemas manuscritos de Carlos Drummond de Andrade, assinados pelo autor, e uma cópia Xerox de um cheque do Itaú, no valor de 21.848,44 cruzados, com data de 5 de setembro de 1986. O cheque é nominal e o favorecido é Drummond. Por trás desses dados e números, há história de um encontro a que já me referi algumas vezes. Hoje, depois de uma releitura do meu poeta brasileiro preferido, me vieram à lembrança, como num filme, todos os momentos que usufruí na sala do seu apartamento, numa rua de Copacabana. E me deu vontade de reviver esses instantes, sem receio de ser repetitivo.

Costumo dizer que o encontro com Drummond  foi o maior prêmio que a publicidade me deu, em 30 anos de trabalho. Foi,  sim. No segundo semestre de 1986, eu era vice-presidente de criação de uma agência de propaganda do Rio de Janeiro. Um dos nossos maiores clientes solicitou uma idéia ousada, de impacto, para o seu calendário de 1987. Depois de reuniões com o pessoal de criação, surgiu a idéia de um calendário com poemas inéditos de Carlos Drummond. “Vocês estão voando muito alto, aterrissem, aterrissem”, brincou o diretor-presidente da agência. Mas me deu permissão para ir adiante, sondar o poeta, saber se a idéia era viável.

Consegui o telefone de Drummond, fiz a ligação , falei do projeto da agência. Sem arrodeios, ele disse que achava boa a idéia, que escreveria os poemas. Quando perguntei quanto custaria o seu trabalho, ele disse: “Isso eu não sei dizer. Por favor, procure saber quanto pagam e me ligue quando souber.” Consultei o diretor-presidente, chegamos a um acordo , voltei a ligar para Drummond. Ao ouvir o preço, o poeta disse, em voz alterada: “”Quanto?” Repeti, temendo que estivesse aviltando o seu trabalho, mas ouvi dele: “Claro que faço. Nunca ganhei tanto dinheiro com poesia!”

Seriam doze poemas, baseados em fotos fornecidas pela empresa. Fiz questão de levar as fotos ao apartamento do poeta, à rua Conselheiro Lafayette, 60/701, Copacabana. Um apartamento simples, imensamente enriquecidos por quadros de Portinari, Di Cavalcanti, Pancetti, Cícero Dias. Em destaque, um retrato de sua filha Maria Julieta por Portinari. O poeta devia estar sofrendo muito de saudade, porque a conversa girou quase toda em torno de sua filha, que morava em Buenos

Aires, com quem trocava cartas duas vezes por semana. A certa altura, Drummond se levantou, me pediu para acompanhá-lo e me mostrou o imenso baú onde guardava as cartas da filha amada. Era uma montanha de saudades, de declarações de amor.

Uma semana depois, fui buscar os poemas que ele havia escrito levar o cheque do pagamento. Nessa manhã,  ele falou sobre poetas, principalmente sobre Vinicius de Morais, de quem admirava a obra poética e sua vocação para grandes amores. Mesmo provocado, não quis falar dele mesmo, nem de sua poesia. Mas ainda falou da filha e  lágrimas vieram a seus olhos. Esse encontro se deu em 5 de setembro de 1986. Em agosto do ano seguinte, Maria Julieta morreu. Aos 85 anos, o poeta suspendeu os remédios que controlavam sua cardiopatia e, doze dias depois, “se afastou da vida voluntariamente.”

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