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A ideologia senhorial

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Ivan Maciel de Andrade                                                                                                           
Advogado                      

A primeira frase do livro “Machado de Assis, historiador” (Companhia das Letras, 2003), de Sidney Chalhoub, não contém ressalvas ou dubiedades: “Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX”. Participam de idêntica opinião Robert Schwarz e John Gledson. Para Schwarz, Machado “expressa e analisa aspectos essenciais ao funcionamento e reprodução das estruturas de autoridade e exploração vigentes no período (ou seja, na sociedade brasileira do século XIX)”. Por sua vez, Gledson “demonstra, num procedimento sistemático de decifração de alusões e alegorias, que o romancista comenta intensamente as transformações sociais e políticas de seu tempo”. Raymundo Faoro escreveu uma obra precursora, extensa e densa, de plena e flagrante atualidade – “Machado de Assis, a pirâmide e o trapézio” (Globo, 4ª. ed., 2001), que se inicia com a afirmação: “Meio século, os últimos cinquenta anos do século XIX, se estende, em colorida tela, numa vasta obra poética (ficcional)”. E se propõe a “reconquistar, no Machado de Assis impresso, não o homem e a época, mas o homem e a época que se criaram na tinta e não na vida real”. Mas se deve lembrar que bem antes, em 1939, Astrojildo Pereira, num ensaio seminal que se tornou clássico, “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”, ressaltara que Machado não é apenas “o mais universal de nossos escritores, é também o mais brasileiro de todos”.

A sociedade patriarcal do Segundo Reinado tinha como característica fundamental a verticalidade: todo o poder político, social e econômico se concentrava na autoridade senhorial, representada pelo oligarca proprietário de terras e de escravos e que tinha sob suas ordens os agregados e dependentes, aos quais impunha a sua vontade, ou melhor, o seu arbítrio. Era, como diz Faoro, “uma burguesia mascarada de nobreza, incerta de suas posses, indefinida no estilo de vida”. As pessoas de “nascimento humilde” tinham duas portas de acesso ao segmento situado no alto da pirâmide: “a ‘cunhagem’ e o enriquecimento”. A “cunhagem” era uma forma de adaptação do “recém-vindo” aos valores, à forma de ser, de pensar e de agir do “círculo que o aceita”. Foi isso, sem dúvida, o que aconteceu com o próprio Machado de Assis, de origem obscura, pardo e pobre, no processo de ascensão ao “establishment”. Sendo que Machado, em sua obra ficcional, como diz Alfredo Bosi, é um “desmistificador” e, como tal, um “quase terrorista”, embora “despiste” aparentando conservadorismo.

Os senhores não admitiam, é óbvio, a autonomia, a liberdade de crítica e de autoorganização dos subordinados. A própria alteridade – o bom relacionamento entre os dependentes – era vista com maus olhos, com desconfiança ou mesmo intolerância. Como indica Sidney Clalhoub, “o que escapava a esse enquadramento era insubordinação ou revolta, algo a ser esmagado com a incivilidade de que são sempre capazes os poderosos”. Capitu – do romance “Dom Casmurro” – conseguiu ascender socialmente através do casamento com Bentinho, homem rico, com tradições familiares e integrado ao status dominante. A acreditar-se na traição de Capitu, este terá sido um ato de imperdoável rebeldia.

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