sexta-feira, 19 de abril, 2024
28.1 C
Natal
sexta-feira, 19 de abril, 2024

A mais bela flor do Capitalismo

- Publicidade -

Por Rafael Duarte (*)

O teatro de rua se alimenta da cultura popular para expor as vísceras e contradições de um Brasil, geralmente a partir do Nordeste. Na visão dessa dramaturgia, o nordestino é essencialmente um pobre coitado e ingênuo que sobrevive do que o destino lhe reserva, levando em conta a querência de um Deus que castiga. A bravura e a resistência surgem invariavelmente como contrapontos sustentados, na literatura, pelo pensamento euclidiano que funciona quase que como uma sentença: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Na esteira dessa peleja do homem contra seu destino, o humor apimenta o maniqueísmo de um bem e um mal retratados de forma alegórica. E o espetáculo apresenta seu juízo final a partir da consciência de seus protagonistas.

Em Flor de macambira, o grupo paraibano Ser Tão Teatro traz a público a estética desse nordestino ao mesmo tempo vítima e algoz de sua história. A peça é uma adaptação livre de O coronel de macambira, do pernambucano Joaquim Cardozo. Nela, a lenda do boi de reis é pano de fundo para a saga de Catirina (Isadora Feitosa). A história une a jovem Catirina, filha do coronel da Fazenda Macambira, e o pobre lascado Mateus (Rafael Guedes). Contra a vontade do pai dela, os dois se apaixonam, fogem de casa e ganham o mundo.

A partir daí o casal entra em confronto com a própria consciência. A alma da ingênua Catirina é simbolizada pelo boizinho mágico, espécie de amuleto com poderes sobrenaturais. Sem dinheiro, mas suscetível aos vícios e encantos mundanos, Catirina é colocada à prova em uma série de situações que a leva a escolher entre o bem simbolizado pelo amor de Mateus e o mal que muda de cara na medida em que a história vai se desenrolando. E aí surgem o coronel matador, o padre capitalista, o bicheiro contraventor, o economista esperto, o banqueiro, o marqueteiro e outras personificações do Coisa-ruim. O espetáculo mostra o capitalismo como a causa da desgraça humana que só o amor é capaz de enfrentar.

Com todas as suas dificuldades e defeitos diante do mundo de sonhos que se abre para a protagonista, Mateus (Rafael Guedes) é o herói protetor que luta com as forças que tem para manter o amor de Catirina.

Vencendo um a um os obstáculos, Mateus só não salva a mulher amada do vilão mais atual da humanidade: o banqueiro. Para pagar as dívidas e conseguir o empréstimo, Catirina vende ao banqueiro a alma (representada pelo boizinho mágico) e paga caro por isso. Num mundo onde Deus castiga, Mateus fica à beira da morte até ser salvo pelo arrependimento da mulher amada. Transformada pelo amor e o perdão, Catirina paga os pecados com juros, recupera a alma, se vinga de todos os algozes e volta a viver com Mateus no melhor estilo “eu era feliz e não sabia”.

O grupo Ser Tão Teatro se sustenta no humor e no drama para contar a saga de Catirina. O folclore é personagem. Além dos personagens do boi de reis, como o próprio boi, o jaraguá e a cobra, o cordel faz muito bem a ligação tanto nas falas como nas canções da trilha do espetáculo entre as personagens e as ações que se sucedem na história. O cenário discreto não compromete a relação com o sertão, mas o ponto alto é realmente o figurino e os recursos das máscaras que alimentam a imaginação do espectador. O que destoa aos ouvidos do público é o sotaque da protagonista. Embora encare a interpretação com segurança, a atriz Isadora Feitosa é traída pelo chiado que está a quilômetros de distânciado sertão nordestino.

Outro ponto que chama a atenção na peça é a tentativa do grupo de transformar a saga de Catirina numa história atual inserindo elementos da cultura contemporânea ao mesmo tempo em que dialoga com o passado. No texto adaptado pelo grupo aparecem expressões como “Caldeirão do Huck”, “bolsa família”, ”cartão de crédito”, um funk, um banqueiro e um marqueteiro que rivalizam no tempo e no espaço da história com um bicheiro carioca típico dos anos 1970/80 e elementos de um sertão antigo.

Ao final, surge até a escalação da seleção brasileira tricampeã do mundo em 1970. Ficou claro que o mal e os vícios mundanos se sustentam a partir do capitalismo, mas se a intenção era mostrar o recorte de um Brasil historicamente contraditório, com suas transformações e adaptações, faltou clareza no diálogo tempo-espaço dessa trajetória.

(*) Jornalista e autor do livro O homem da Feiticeira – a história de Carlos Alexandre. O texto faz parte da oficina “Laboratório de
Críticas”, ministrada pelo jornalista Valmir Santos/SP, durante o Festival O Mundo Inteiro é um Palco

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas