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A negritude de Machado de Assis

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Ivan Maciel de Andrade
advogado

Mesmo que se passe à margem da concepção sociológica sobre a criação artística, ainda assim se deve reconhecer que a maior ou menor adaptação do escritor à sociedade onde vive exerce influência em sua capacidade criativa. Depende muito, é certo, tanto da índole do próprio escritor como da intensidade dos condicionamentos positivos ou negativos que venha a receber. É sob essa ótica que se torna válido abordar o problema do preconceito de cor no Brasil à época em que se projetou na imprensa, no teatro, na poesia, no ensaísmo, nas crônicas, nos contos, nos romances o genial (“sem cair no pecado da beatice literária”, para usar a expressão de Augusto Meyer) Machado de Assis.

Nosso maior escritor era negro ou mulato? Joaquim Nabuco – um dos mais importantes líderes da luta pelo fim da escravidão no Brasil – o apolíneo Joaquim Nabuco, filho da nobreza patriarcal, que terminou seus dias na condição de nosso embaixador nos Estados Unidos, um dos maiores amigos de Machado de Assis, não gostava quando o classificavam de negro ou mulato. O que revela, no grande abolicionista, uma ponta de indisfarçável preconceito racial, pois, para ele, o fato de ser negro ou mulato afetava a grandeza de Machado de Assis. E assumia posição radical com relação a esse assunto. Ao ponto de considerar, em carta ao crítico José Veríssimo, a palavra “mulato” pejorativa.

Mas a verdade é que Machado de Assis, com ascendentes ex-escravos, criado num ambiente humilde, convivendo, durante grande parte de sua vida (até 49 anos), com o regime de escravidão que ainda subsistia, vergonhosamente, no Brasil, ascendeu à posição mais alta nos meios intelectuais do país escravocrata. Isso nega a existência de preconceito racial no Brasil? Certamente, não. Demonstra apenas que Machado, além da genialidade que lhe é reconhecida, foi um excepcional ser humano.

Analisando “os retratos que ficaram” de Machado de Assis, o francês Jean-Michel Massa constata: “nota-se que, adulto, tinha, como muitos brasileiros, alguns traços negroides – cabelos ligeiramente crespos, o lábio inferior bastante carnudo, um nariz achatado”. Mas ressalva que “esses traços, mais ou menos acentuados segundo os vários retratos, são bem encobertos pelo ‘pince-nez’ e pelo uso da barba”. No entanto, eles se evidenciam “impressionantes na sua máscara  mortuária.” 

Esse mulato que tentava, para viver melhor, disfarçar a cor da pele, esse funcionário público valorizado por sua competência e honestidade, viveu, toda a sua longa vida, em função do jornalismo e da literatura, lendo e escrevendo. Não abandonou a literatura mesmo quando doente ou sob o impacto de uma insuportável perda – a da companheira Carolina, com quem dividiu (suprema homenagem) seu interesse obsessivo pela leitura e pela atividade de escritor. Como escreveu a biógrafa que com ele mais se identificou, Lúcia Miguel Pereira, “a pureza da personalidade desse mestiço que tanto elevou a sua gente e o seu país paira sobre a literatura brasileira como um símbolo da nobreza do pensamento e do poder do espírito.” Os próprios inimigos que o atacaram em vida, terminaram se retratando, o que, para Augusto Meyer, “é uma lástima: faltaria assim à glória de Machado a homenagem do ódio.”

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