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A realidade e a fé

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Cláudio Emerenciano
[ Professor da UFRN]
Winston Churchill, quando Londres se estiolava sob efeito das bombas alemãs, orava a Deus e meditava sobre o sentido da vida. Mantinha-se imperturbável, inacessível, confinado em pensamentos e aflições. Parecia percorrer, silenciosamente, a noite dos tempos. Buscava configurar interiormente a aurora eterna, na qual os homens desfrutarão verdadeiramente de paz e justiça sem fim. Mais tarde, em suas memórias, disse que os homens serão vazios e sem rumo caso não se convertam em janelas ou clarabóias abertas para Deus. Sentenciou: “… pois só o caminhar para Deus pode satisfazer”. A busca de Deus é uma infinita ascensão. Nada tem sentido, nesse universo ilimitado, sem a perspectiva dessa escalada. Thomas Merton, frade trapista e pensador, viu na elevação espiritual “silencioso crescimento de uma transformação no amor”. Inserção no amor infinito de Deus. A busca de Deus é “ascensão à Luz”. Destinação eterna da humanidade.

Desde a adolescência um livro me fascina: “As confissões” de Santo Agostinho. A obra é atual. Varreu os tempos. Inspira, comove, catequiza e doutrina desde o século III da era cristã. Excepcional relato da transformação de um homem genial, dotado de uma das mentes mais notáveis em todos os tempos. Vida e obra exaltadas por Will Durant em “História da Humanidade” e Peter Brown na biografia “Santo Agostinho”. Santo que compatibilizou o pensamento de Platão com o cristianismo em outro livro, “A Cidade de Deus” (De Civita Dei), revelando essa influência. Platão, em “A República”, “O político” e “As leis”, inspirou ainda o santo filósofo ao conceber a “Cidade dos Homens”. Cenário de cristianização da ordem social. Ensinamentos que chegaram aos nossos dias. São aplicáveis, até hoje, a qualquer contexto social e político. Sobretudo nestes tempos de globalização, pandemia e de chocantes contradições. Os desafios políticos enfeixam compromissos com a preservação da vida, a dignidade do homem, a liberdade, a erradicação de privilégios, a aplicação impessoal do Direito e a eliminação de toda e qualquer forma de aviltamento da condição humana: miséria, fome, ignorância, violência, enfim, injustiça social.

O conceito de bem comum se aprimorou na obra de Santo Agostinho, posteriormente alçando novas dimensões com São Tomás de Aquino. A corrupção e os corruptos são antíteses da ética e da moral cristãs.  Incompatíveis, disse São Tomás, com uma ordem social justa. Essa condenação não é recente. Advém do século XIII. Integra nossa herança cultural e espiritual. O cientista político Seymour Martin Lipset, em “O homem político”, numa pesquisa universal, demonstrou que a corrupção contínua e impune inviabiliza a democracia, fragilizando suas instituições e desacreditando o Direito.

Há personagens que tipificam atitudes na vida pública. Marco Túlio Cícero, advogado, pensador, tribuno e escritor, viveu na Roma republicana anterior aos Césares. Encarnou a defesa da República. Amargou diversas vezes o exílio. Teve um fim trágico e cruel. Jamais abdicou dos seus princípios. Tancredo Neves, no elogio póstumo de Juscelino Kubitschek, resumiu a vida de contínua imolação do senador romano: “Cícero, cuja cabeça decepada, colocada no rostro do fórum romano, continua sendo, através dos séculos, o mais veemente protesto contra os delírios da força e as insânias da truculência, antes curtira por vezes o exílio, enfrentando-o com dignidade e altivez”. Sua melhor biografia é do italiano Maffio Maffii (“Cícero e seu drama político”). A romancista Janet Taylor Caldwell também reconstituiu suas vida e época em “Um pilar de ferro”. Cícero sustentava que a coisa pública é impessoal e insusceptível de proveitos individuais. Tudo dependendo da submissão do poder à lei: “O poder e a lei não são sinônimos”. Nas “Catilinárias” se antecipou ao Direito de Rebelião: “Os homens de boa vontade, se desejarem sobreviver como nação, deverão destruir esse governo que tenta determinar por capricho, infringindo a lei”.

Romain Rolland (Nobel da literatura), na introdução de “Jean-Christophe”, proclamou que o herói é um “anjo” denunciador da guerra, do terrorismo e da violência. Sua morte “não é senão um momento do Ritmo como agente do grande sopro eterno”. Ainda que morra cem vezes, renascerá sempre. “Fênix” da paz, condenando absolutamente a violência. Proclamou a vinculação entre a realidade e a fé cristã: opção de vida individual e coletiva.

Jacques Maritain, em “O pensamento vivo de São Paulo”, fez  exegese de suas famosas Cartas (Epístolas), aplicando-as aos dinamismos sociais do século XX. As transformações inerentes ao processo histórico, em qualquer tempo, não se constituíram em fosso entre a doutrina cristã e a vida social.  A fé não se contrapõe à ciência. Uma não rejeita a outra. São Paulo, na Epístola aos Hebreus (11,1), legou conceito de fé: “A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos”, Teilhard de Chardin, em “O fenômeno humano”, ressaltou que Jesus é “Deus-Homem”,  e o “Homem Perfeito” na escala da evolução. E João Paulo II exortou: “Não, não tenhais medo! Antes, procurai abrir, melhor, escancarar as portas a Cristo! Ao Seu poder salvador abri os confins dos Estados, os sistemas económicos assim como os políticos, os vastos campos de cultura, de civilização e de progresso! Não tenhais medo! Cristo sabe bem “o que é que está dentro do homem”. Somente Ele o sabe!”.

 Os Evangelhos não documentam apenas a vida, os ensinamentos, a crucificação e a ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Revelam posturas que o apóstolo Paulo detectou com  lucidez: entre elas a simplicidade, abrangendo as circunstâncias na vida de todo e qualquer homem. A fé cristã não requer atualizações ou ajustamentos, pois ela expressa a essência e o sentido da vida humana. Não se pode esquecer jamais essa afirmação do Cristo Senhor sobre Sua missão: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14. 6).

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