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A seca em palavras

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Marcius Cortez
Escritor

“a janela some da parede/a palavra de água se dissolve/na palavra sede, a boca cede” (ArnaldoAntunes).

Quando menino, eu vi a seca. Hoje, setenta anos depois, torno a vê-la. O flagelo se assemelha a uma pedra que gira em torno do desaparecimento da chuva e do florescer verdejante que, um dia, após demorada espera, cai do céu. 

Do passado, guardo duas lembranças: os retirantes vagando pelas estradas no passo cambaleante das esperanças perdidas. Guardo também o horror do pacto da morte firmado pelos idosos que já não tendo condições de engrossar o êxodo se deitavam para secar. Logo a última gota da vida se esgotava, os velhos sertanejos se convertiam nos mortos da sala da choupana calcinada pela atmosfera agonizante.

No meu reencontro com a seca tive a companhia de uma muda de faveleira, que peguei no terreiro do Grupo Escolar “Raimundo Silvino” em São José do Seridó, cidade que não vê uma boa chuva há quatro anos. A Cnidoscolus quercifolius traduz a imagem e a semelhança da estiagem. O sertanejo a venera. Nos pelos urticantes de suas folhas pulsa o sentido real do flagelo. Faço parte de ti e portanto, sou a cura para teus males. O homem transforma essa planta forrageira em alimento. O caule, as folhas e os ramos viram farelo que a criação come. Ela dá frutos, sementes oleaginosas, favas, fibras e flores. Nos galhos desse arbusto que já foi conhecido como Jatropha phyllacantha, o João-graveto, também chamado de casaca-de-couro, faz o seu ninho. De repente, o filho pássaro abre as asas e vai embora chamar a chuva de volta.    

Mesmo contrariada, a endêmica mandioca-brava perdoa o homem por ele não aproveitar todas as suas benfeitorias. Ironicamente é como se essa tímida mudinha tivesse consciência de que a seca permanece afogada num vasto mar de irracionalidades, pois o coração dos homens em lida com a estiagem tornou-se mais desértico do que a terra atrofiada. Resta o consolo de apreciar sua misteriosa beleza. Os tubérculos (as batatas) que se misturam com suas raízes agem como um reservatório de água que a própria planta administra, como se dosasse a sua sobrevida. Se existe um mastro para a seca, esse mastro é a faveleira, o navio pirata que navega nas caatingas da microrregião do Seridó Oriental em pleno Polígono das Secas no Rio Grande do Norte.

Encerrando meu breve relato gostaria de apagar da memória o acervo das imagens do flagelo (vídeos, filmes, fotos, ilustrações, instagram) e substituí-las por palavras. Penso que a grandeza da tragédia está na contradição entre a penúria e a permanência – como se o herói sertanejo precisasse de um combate feroz para testar suas forças e se medir com os deuses. Ao contrário de muitos, considero que na seca existe uma vitória, algo assim como o peixe fisgado no anzol. Euclides da Cunha não estava louco quando admitiu que ela possui o seu lado paraíso. A natureza que ruge, a inclemência do sol em fogo, o solo crestado esconde o sumo da vida. A polpa da batata da faveleira produz um poderosíssimo estimulante sexual. A mandioca-brava nos propõe o desejo ardente dos contos de fadas enquanto esperamos as flores alucinógenas da  Jurema rebrotarem com a primeira chuva.

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