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A terceirização ocupa mais espaço

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Isaac Lira – Repórter

Ao ocupar o vácuo oferecido pelo sucateamento do Sistema Único de Saúde, os contratos com empresas privadas têm sido utilizados como solução para as carências da rede municipal de Saúde em Natal. Utilizada primeiramente para a realização de cirurgias eletivas, a iniciativa privada atua hoje dentro dos postos de saúde, fornecendo inclusive médicos, na realização de exames e em breve participará também da distribuição de medicamentos. A despeito da satisfação dos usuários, a questão suscita polêmicas acerca da legalidade e divide opiniões.

Muito embora a satisfação dos usuários do SUS acerca do preenchimento das escalas de médicos, os movimentos sociais se opoem à terceirização da saúde muncipalDesde o início de agosto, os profissionais da Cooperativa Médica do Rio Grande do Norte têm atuado não somente ao fazer cirurgias de média e alta complexidade, como é costume há mais de 10 anos, mas também no fechamento das escalas dos pronto-atendimentos do Município. Não é novidade os empecilhos encontrados pela Secretaria Municipal da Saúde para fechar as escalas das unidades de saúde. Não há médicos suficientes no quadro, justificava a gestão. Para lidar com o déficit, a Secretaria tem contratado a Coopmed para fornecer mão de obra.

A UPA de Pajuçara, projeto do Governo Federal, foi pioneira no Estado ao utilizar a terceirização dentro do atendimento de urgência. Poucos meses depois, o Hospital dos Pescadores, nas Rocas, recebeu tratamento semelhante: passou a funcionar com médicos da iniciativa privada. O processo tem sido estendido. Desde o dia primeiro de setembro, a Coopmed atua também na recém-inaugurada Maternidade de Felipe Camarão. O Hospital Infantil Sandra Celeste, por sua vez, trabalha em regime misto, com médicos cooperados complementando a escala. A intenção do Secretário Municipal de Saúde, Thiago Trindade, é estender o sistema para uma unidade da Zona Oeste ainda esse ano.

A distribuição de medicamentos é outro setor que deve abrir espaço para a contratação de empresas privadas dentro do Sistema Único de Saúde em breve. Trata-se do “Farmácia da Gente”, nome provisório de um programa para distribuir medicamentos em gestação na Prefeitura. Com o novo sistema, o usuário do SUS poderá retirar o remédio prescrito pelo médico em uma farmácia conveniada, ao invés de precisar se dirigir à farmácia pública de um posto de saúde. Num primeiro momento serão 67 itens. Depois, o programa será expandido para os medicamentos de usuários cadastrados com doenças crônicas, como pressão alta e diabetes.

Na setor farmacêutico, um outro projeto da Secretaria de Saúde de Natal causou atrito entre gestão e servidores. No dia 28 de agosto, a SMS publicou a contratação emergencial, por dispensa de licitação, do DNA Center para centralizar a realização de exames de toda a rede municipal. O Conselho Regional de Farmácia protestou contra a medida, alegando a existência de equipamentos e profissionais no serviço público com capacidade para dar conta da demanda. Detalhe: desde maio a rede convive com a falta de reagentes e insumos necessários à realização de exames. A licitação, alvo de diversos recursos, não andou, segundo a SMS, e a solução apontada foi a terceirização.

Esses fatos, todos recentes, dão continuidade a um processo que remonta à criação do SUS. A administração pública convive com outras terceirizações, de atividades complementares, como vigilância e limpeza. Com a formação das cooperativas médicas, o que, no RN, foi iniciado com a Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas, a realização de cirurgias de alta complexidade seguiu o mesmo rumo. O SUS em si não possui, nem nunca possuiu,  hospitais, equipamentos ou profissionais para atender a população nesse setor.

O que indiscutivelmente existe hoje é um aprofundamento desse processo, no que tange a Natal com uma participação cada vez maior da iniciativa privada nos serviços públicos de saúde. Processos semelhantes vivem cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.   

Entidades denunciam prefeitura

Apesar da satisfação dos usuários do SUS acerca do preenchimento das escalas de médicos, conseqüência direta da contratação da cooperativa médica para as unidades de saúde, os movimentos sociais na área da saúde, principalmente os Conselhos Municipal, Estadual e Federal, fazem uma ferrenha oposição ao modelo adotado pela Prefeitura de Natal. Na visão desses movimentos, o Sistema Único de Saúde é incompatível com esse tipo de participação da iniciativa privada.

Por conta disso, o Conselho Municipal de Saúde realizou na última quinta-feira uma reunião extraordinária acerca do aprofundamento das terceirizações na saúde municipal. O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Júnior, também participou do encontro. Ficou acordado o encaminhamento de uma nova denúncia contra a Prefeitura do Natal pela não-adoção de medidas para diminuir a dependência do setor privado. A primeira delas foi protocolada em fevereiro de 2009, onde se recomendou a reestruturação da rede com serviços eminentemente públicos.

Entre os inúmeros argumentos utilizado pelos Conselhos, a impossibilidade de se delegar uma atividade essencial, como a saúde, do público para o privado, é um dos mais utilizados. Nesses termos, a execução da saúde pública por empresas privadas inviabilizaria os princípios do SUS, no que diz respeito a universalidade, pois, segundo os conselhos, cada contrato tem um teto financeiro e de procedimentos. Além disso, o caráter preventivo, e de cuidado na Saúde, ficaria também inviável.

Marcelo Medeiros, presidente do Conselho Municipal de Saúde, aponta uma divergência política, não necessariamente partidária, entre os dois modelos. Os investimentos em serviços de urgência, a partir de terceirizações, privilegiam a cura dos problemas imediatos da população, enquanto o que propõem os conselhos é o cuidado do paciente e a assistência preventiva. Um dos exemplos é o Programa de Saúde da Família, onde a assistência multiprofissional cuida da saúde dos usuários, antes do desenvolvimento de doenças crônicas, mais graves e de tratamento mais caro.

Já Francisco Júnior, presidente do Conselho Nacional de Saúde, acrescenta que o atual panorama – delegar a execução de serviços a cooperativas e outros entes privados – é ilegal e mais caro para os cofres públicos. A ilegalidade citada por Francisco Júnior é um reflexo da convicção de que o SUS precisa ser eminentemente público. Ele também acredita na utilização dos recursos para servir interesses diferentes do “interesse público”. “Esses contratos servem para o enriquecimento dessas empresas e profissionais. Estão fazendo do SUS balcão de negócios”, diz Júnior.

Por conta dessa visão, os conselhos lutam, inclusive na Justiça, para diminuir a participação das cooperativas e demais entes privados no Sistema Único de Saúde. Eis a “verdade” para esses movimentos sociais: os profissionais e empresas privadas precisam ser substituídos por profissionais concursados, servidores públicos.

“Desafio qualquer um a encontrar outra solução”

O secretário municipal de Saúde, Thiago Trindade, fala em soluções concretas. Ao ouvir as alegações de movimentos sociais, conselhos de saúde e também do Ministério Público, cujo posicionamento coincide em grande parte com o evocado pelo Conselho Nacional de Saúde, Thiago é taxativo: “Desafio qualquer um a encontrar outra solução para os problemas da saúde pública em Natal. A população precisa de uma resposta imediata e eu não tenho outra alternativa”. A gestão adota, aprova e defende o modelo de “gestão compartilhada”. Ou seja, a contratação de empresas para atuar no SUS.

A carência de mão de obra e as dificuldades com a burocracia são dois fatos evocados por Thiago Trindade para explicar a adoção do “modelo de gestão compartilhada”. A primeira parte do argumento se reporta à famosa dificuldade de atrair médicos para o serviço público. Concursos são abertos e poucos são os interessados. Para se ter uma idéia, nos três últimos concursos menos de cinco médicos se interessaram em ser servidores públicos. Explicação: o salário, alegam os profissionais, é baixo. A cooperativa, por sua vez, consegue negociar valores mais lucrativos que o oferecido pela Prefeitura de Natal.

Atualmente os médicos cooperados nos serviços de pronto-atendimento do Município recebem cerca de R$ 918 por plantão. Já os colegas da rede pública, com vínculo de servidor, recebe, para desempenhar o mesmo serviço, cerca de R$ 600. O servidor tem salário-base, direito a férias, décimo terceiro e todos os direitos trabalhistas garantidos. Os cooperados não. Mesmo assim, no fim das contas, se as duas categorias trabalharem as mesmas quantidades de horas, os médicos das cooperativas recebem mais.

Como os concursos não são atrativos e os médicos negociam salários que alegam ser mais justos através das cooperativas, a luta para fechar escalas com profissionais eminentemente públicos é inglória. Assim, o serviço público depende de vínculos com entes privados, ao  contrário do que reza a legislação sobre o tema, onde a saúde particular deve atuar como complemento.

Nesse meio tempo, entre debates ideológicos e de legalidade, há milhões de pessoas que dependem diariamente do serviço público de saúde. É possível esperar a resolução da polêmica? O secretário de saúde acredita que não. “Hoje eu só consigo fechar as escalas de unidades importantes, como o Hospital dos Pescadores e a UPA de Pajuçara, com o contrato com as cooperativas médicas. E não posso deixar a população esperando a reestruturação do sistema”, diz.

O presidente da Cooperativa Médica do Rio Grande do Norte, Fernando Pinto, tem posicionamento semelhante. Ele acredita que as cooperativas desempenham papel importante no sistema de saúde de Natal hoje, tendo em vista a satisfação de gestores e usuários com os serviços nas unidades com “gestão compartilhada”. “Quero deixar claro que a cooperativa não é contra a estruturação do serviço público ou contra a estruturação da carreira dos médicos. Nós ocupamos um espaço que o SUS não alcança, por suas deficiências. Sem a cooperativa, a saúde pública hoje não funciona”, aponta.

Ações tentam diminuir algumas distorções, diz MP

No que diz respeito à legalidade dessas contratações com a iniciativa privada, existe uma série de ações na Justiça, protocoladas pelo Ministério Público, para tentar diminuir a dependência do setor privado e corrigir algumas distorções existentes, na opinião da Promotoria da Saúde. A maioria delas diz respeito a contratos com a cooperativa médica e com hospitais da rede privada. A promotora Iara Pinheiro admite a dependência dos contratos com particulares, a ilegalidade de algumas situações, mas não vê perspectivas, a curto prazo, para a resolução do problema.

Iara Pinheiro explica que, a rigor, não há ilegalidade na contratação de empresas para prestar serviços ao SUS. Há toda uma legislação a respeito, que permite e disciplina o vínculo. A grande questão no que diz respeito ao Rio Grande do Norte é a forma como o vínculo é realizado. A contratação das cooperativas começou há 12 anos, com a cooperativa dos anestesiologistas, e se expandiu para a Cooperativa Médica, que atua em várias especialidades, e a Cipen, responsável pelas cirurgias pediátricas. Nesse tempo, o que devia ser temporário acabou se tornando permanente.

Em todo esse tempo, não houve investimentos maciços em saúde pública, suficientes para a estruturação de uma rede própria de saúde no Estado e nos municípios. Resultado: toda vez que fala-se em terminar o contrato com as cooperativas há uma grande crise na saúde, com filas de cirurgias paradas, deficiência no atendimento às urgências, etc. Ao mesmo tempo, os contratos têm uma particularidade considerada ilegal: o poder público paga ao hospital e ao profissional ao mesmo tempo.

Na visão da promotoria, o vínculo deveria ser com os hospitais – os mais importantes hospitais de Natal têm contratos com o SUS – que seriam responsáveis por conseguir a mão de obra. Os médicos não aceitam. Querem se reportar diretamente à Secretaria de Saúde. Eis um dos primeiros vícios, na opinião do Ministério Público. Outro ponto é a existência de servidores que tem um duplo vínculo, público e privado.

Entre a preponderância do público no Sistema Único de Saúde e a continuidade do atendimento à população, o Ministério Público considera o último fator mais importante. Não dá para simplesmente decretar a suposta ilegalidade e paralisar o serviço. “Além de toda essa questão complexa que se coloca, está a saúde da população, que é muito mais importante”, diz Iara Pinheiro.

O entendimento é acompanhado pelo Tribunal de Contas da União em recente acórdão relativo ao Estado da Paraíba, que vive situação semelhante. O MPF da Paraíba pediu a nulidade dos contratos naquele estado, mas o TCU não acatou o pedido para não levar a população à desassistência. Ao mesmo tempo, o Supremo Tribunal Federal julga atualmente pelo menos três Ações de Inconstitucionalidade sobre terceirizações, inclusive com respeito às UPAs, onde organizações sociais filantrópicas são responsáveis pela gestão da unidade. Ainda não há decisão sobre o caso.

Veja o quanto a prefeitura gasta

Contratos de terceirização na Secretaria Municipal de Saúde iniciados em 2009 para serviços de atendimento ao público

Oftalmologia:
Três contratos com clínicas para consultas ambulatoriais, no valor de R$ 716,5 mil

Fonaudilogia:

Um contrato com clínica para realização de consultas no valor de R$1.187 milhão

Fisioterapia:
Um contrato com clínica no valor de R$ 77 mil

Exames:
Contratos com quatro laboratórios no valor de R$ 1,9 milhão

Cirurgias e ambulatório de alta complexidade:
Contratos com hospitais, instituições filantrópicas e cooperativas no valor de R$ 46,4 milhões

Total (valores aproximados) Campeãs de reclamações sobre aparelhos
R$ 50 milhões

Bate-papo

» Sylvio Eugênio – secretário executivo

Plano é pagar até R$ 10 mil por mês aos médicos

Sylvio Eugênio, secretário executivo da Prefeitura de Natal, responsável pelo Plano de Cargos e Carreira dos servidores da Saúde

Qual será o salário dos médicos após a aprovação do Plano, caso se chegue a um consenso com a categoria?

Estamos programando R$ 6 mil   entre salário base e gratificação por atividade médica, além de gratificações específicas para cada tipo de profissional. Assim, o médico do serviço de urgência vai ganhar mais de R$ 8 mil e o médico do Samu vai chegar a quase R$ 10 mil.

É possível voltar a ter um serviço público financeiramente atrativo para os médicos, que hoje não se interessam pelos concursos da Prefeitura?

Essa é a intenção. Hoje perdemos profissionais e temos problemas com as escalas. Haverá um impacto de cerca de R$ 5 milhões por mês, sendo R$ 2,7 milhões somente com a área de saúde.

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