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As sementes do bem

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Cláudio Emerenciano
Professor da UFRN

Uma estrada e um assalto. Um homem está ferido. A agressão dos assaltantes o deixou sem sentidos num lugar ermo e ignorado. Ao readquirir consciência, estendido naquele chão perdido do mundo, distante de qualquer povoado ou cidade, a vítima sente dores por todo o corpo. Não consegue levantar-se. Olha o céu azul. Contempla as árvores, que se agitam sob o embalo dos ventos. Pássaros, à distância, volteiam, num bailado enigmático. Tenta romper o silêncio com gritos. Quer pedir socorro. Mas suas cordas vocais não emitem som algum. Perdera a voz? É mais uma dúvida que o atormenta naquele emaranhado de angústia, desespero, medo e desalento. A ansiedade aumenta ante a perspectiva de um abandono até o fim…

 Eis um conto universal. De todos os tempos. No qual a condição humana se tipifica. O assaltado ouve o barulho de um veículo. Era um cabriolé que se aproximava. Chegara a salvação? Um magistrado seguia pela estrada e vê aquele corpo agitando os braços em súplica de ajuda. Infelizmente, manifestam-se indiferença e desapreço. O viajante segue caminho, confinando aquela vida aos estertores e ao esquecimento. Outro carro desponta. É um sacerdote. Dois cavalos puxavam sua carroça longa e coberta. O dono sequer sentia a inclemência daquele sol de começo da tarde. Os cavalos quase tocam as patas naquele corpo, que se contorcia em extrema aflição. Novamente se revela insensibilidade àquele sofrimento. O agente da religião não testemunhara sua fé. Foi embora. Por fim, surge outro. Vem montado em seu cavalo. Era um mascate, comerciante itinerante por aqueles sítios, que não hesita em socorrer o desconhecido. Dá-lhe de beber. Trata, como pode, suas feridas. Coloca-o cuidadosamente no cavalo e o leva ao hotel mais próximo. Paga-lhe hospedagem e a assistência necessária à sua plena recuperação. Diz ao hospedeiro que pagará, ao voltar, qualquer despesa adicional. Por fim, ao despedir-se, chama o desconhecido de irmão.

Essa é, essencialmente, a parábola do Bom Samaritano, contada por Jesus Cristo (Evangelho de São Lucas 10,25-37). Na História da Humanidade, ninguém melhor caracterizou o sentido da solidariedade do que Jesus. Solidariedade absoluta, que imerge o homem na dimensão infinita do amor. A parábola suscita outro questionamento. Consagra a impossibilidade de dissociação de uns com os outros. A vida é individual, mas é desfrutada em comum. Não há felicidade susceptível de isolar ou excluir alguém da consciência de sofrimentos, injustiças, alegrias, sonhos e esperanças dos outros. O mundo nunca será plenamente feliz enquanto não exercitar, em escala planetária, essa solidariedade. É a identificação com o próximo, o outro, seja quem for. É a verdadeira partilha, que vincula os homens por sentimentos. É o reconhecimento de que o sentido e o fim da “terra dos homens” reclamam solidariedade.

Mas os homens, em escala planetária, predominantemente rejeitam as condições que fermentam em cada um consciência da paz. Ou melhor, tornando-a seiva, alimento e motivação para o usufruto da vida, da justiça e da liberdade. Os surtos de violência, que irrompem em todo o mundo, impregnados de loucura, perversidade, fanatismo e ódio, são uma degradação coexistente com o desequilíbrio ambiental, cujos desdobramentos apocalípticos são infelizmente previsíveis e aterradores. Assiste-se globalmente a um conflito entre os interesses de um autoritarismo empresarial (público e privado) e os do chamado Estado social. Até nesse aspecto, paradoxalmente, os homens não revelam buscar ou viabilizar justiça, equidade e razão sem as quais a eficácia dos governos estará condenada à impotência e ao descrédito. Sem volta…  

  Neste contexto, somos um país que invoca em sua Constituição a proteção de Deus. Presume-se que a sociedade brasileira se organizou e constrói sua História sob inspiração da fé num Deus único e verdadeiro. Revelado ao mundo por Jesus Cristo. Apesar de suas contradições, os brasileiros, em sua grande maioria, são cristãos. Não somente isso. Apesar de tantos e tantos antagonismos em nossa formação histórica. Desde o massacre de indígenas à escravidão dos negros, trazidos da África em cativeiro. Mesmo assim, os valores cristãos se impregnaram na maneira de ser, agir, pensar, querer e sonhar dos brasileiros. Ressalte-se também que a Constituição consagra a liberdade de fé religiosa e o direito à não crença. Mas não há sociedade de base cristã sem vivência e incessante busca da paz. O que é a paz? O pastor americano A. J. Muste disse, em exortação memorável, que “não existe um caminho para a paz; a paz é o caminho”. A paz, portanto, não é um fim em si mesmo. É o meio pelo qual os homens ascendem espiritualmente a Deus. Paz sinônimo de não-violência, de justiça, de solidariedade, de ascensão e de harmonia. Não há paz sem harmonia. No âmbito das relações humanas, a paz pressupõe tolerância de uns com os outros. Doze vezes Jesus exortou os homens à paz. Quando condenou a ambigüidade, a insipidez e a dubiedade humanas (“Tende sal em vós mesmos e paz uns com os outros”, Marcos 9,50). Ao legar aos homens de todos os tempos a paz verdadeira, absoluta e inesgotável: “deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo dá” (João 14,27). A paz germina a cultura do bem e do amor. Exorciza a maldade e os egoísmos. Suscita o amor pleno e sem fim. Encaminha a humanidade à plena lucidez para viver e ascender.   

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