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Ausentes da mesa

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Guloseimas do tempo da vovó, daquelas que quase não se acham mais por aí, são as que deixam as melhores lembranças gastronômicas. Mas não é raro o passar do tempo, as evoluções tecnológicas e as mudanças de costumes fazerem com que esses sabores desapareçam do paladar. O alfenim é uma dessas iguarias populares e tradicionais que foram deglutidas pelo tempo. Apesar de a culinária moderna destacar cada vez mais o ingrediente regional, o docinho de açúcar e tantos outros sumiram das lojas, feiras e restaurantes. Alguns chefs de cozinha e gourmets estudiosos estão tentando fazer que essas delícias antigas não sigam como prato fora do cardápio. Não custa lembrar e saborear.

Chef fez uma releitura usando o alfenim e a popular fuba de milho doce, nesta receita batizada de “Bolo Gentileza”Jovens natalenses com pouco mais de 20 anos não sabem o que é um alfenim. Foi essa constatação que levou os chefs Graça França e Ângelo Medeiros, até então estudantes de gastronomia na UnP, dois anos atrás, a sair em campo para resgatar a deliciosa guloseima feita de açúcar. “Um trabalho de faculdade acabou se tornando um projeto sobre a extinção e o resgate do alfenim”, lembra Graça. A chef – que também é jornalista – conta que foi preciso um árduo trabalho de garimpagem e pesquisa in loco para saber por onde anda o alfenim no estado.

O alfenim é uma massa seca de açúcar – cuja composição varia basicamente entre o vinagre de vinho branco, óleo de amêndoa ou limão com clara de ovos – de origem árabe (al-fanid), que entrou por Portugal e Espanha, e através destes chegou ao Brasil. “Foi ao estudar a herança portuguesa nos doces brasileiros que cheguei ao alfenim. Fui procurar, e surpresa: não tinha mais em lugar algum”, conta. Ângelo diz que não havia o doce em nenhum dos lugares habituais. “Nas feiras mais antigas da cidade, como Alecrim e Rocas, e nem nas casas de produtos sertanejos. Nem sinal do alfenim”, completa.

Foi só através do boca a boca, quase um trabalho jornalístico investigativo, que Graça e Angelo chegaram a Assu e  a Terezinha, ou ‘Dona Tetê dos Alfenins’. A única doceira da cidade ainda em plena atividade no ramo. “A dona Terezinha é uma daquelas figuras típicas do interior. Uma senhora de mais de 70 anos que faz alfenim desde criança. A produção é toda caseira, que ela comanda junto às netas, noras e filhas, todas as mulheres da família”, explica. Terezinha produz apenas sob encomenda. Basicamente por ocasiões de quermesses, festas juninas e eventos religiosos no interior do estado. Ela também produz para Natal durante a Festa do Boi.

Os chefs foram à Assu conferir e registrar o trabalho de dona Terezinha. “É tão simples e ao mesmo tempo muito trabalhoso e artístico. Ficamos impressionados”, conta Ângelo. Apenas com água, açúcar, limão e claro de ovos, Terezinha faz seus docinhos em forma de flores, animais, cachimbos, peixes, sapatinhos, meninas, pilões, e o que mais a imaginação deixar.

O chef aponta uma série de detalhes  que só doceira do Assu percebe, como o uso apenas de limão amarelo, que caiu do pé, e de uma bancada de granito que não seja polida, para passar a massa. “Ela faz tudo no olho, sem indicação de temperatura ou tempo; já sabe qual é o ponto só de olhar”, ressalta. A forma aos docinhos é dada manualmente; para uns poucos ela usa forma.

A luta para resgatar a tradição nas mesas locais

Reunidas as informações e os alfenins, Graça e Ângelo tentaram trazer o doce novamente às vitrines natalenses. “Fizemos contato com restaurantes de cozinha regional e feiras de artesanato, mas os problemas práticos de fornecimento não deixaram a coisa ir pra frente”, lamenta Graça. Mesmo assim, o projeto repercutiu fora do Estado, com a participação da dupla no ‘Mesa Tendências’, um congresso internacional de gastronomia organizado pelo Senac/SP e revista Prazeres da Mesa. Agradou geral. Por aqui, os chefs criaram um bolo de fubá com calda de canela, decorado com uma flor de alfenim. “O alfenim seria uma ótima decoração para sobremesas finas”, diz ele. Está lançada a ideia.

Gastrônoma lista os alimentos em risco de extinção

A gastrônoma Adriana Lucena, cozinheira, pesquisadora e militante do ‘slow food’, pôs o alfenim na sua lista de alimentos em risco de extinção. “O principal é preservar o ‘saber fazer’. Em minha pesquisa sobre alfenim conclui que os jovens não querem aprender a fazer, pois é trabalhoso”, diz. Além da questão cultural, Adriana também reclama da ‘pasteurização’ geral do alimento artesanal. “Muita coisa está em conflito com a legislação sanitária atual, que está impondo a pasteurização de tudo. Não digo que seja errado, mas tudo pode ser adaptado. Sinto que há preguiça em tomar certas atitudes”, explica.

Além do alfenim, a lista de resgate e preservação da ‘slow food’ inclui o umbu verde (há um grupo que exporta a geleia de umbu), o arroz vermelho do Vale do Piancó, o caranguejo aratu, a mangaba, o pitu (um tipo de camarão) do Vale do Maxaranguape, o choriço (doce à base de sangue de porco), e até mesmo comidas mais conhecidas como a carne de sol e o queijo de coalho. “Não há mais carne de sol de verdade. Há uma carne temperado com salzinho e congelada no freezer. A pasteurização tomou conta de tudo. É preciso haver conscientização”, alerta.

Alfenim em Natal via Assu

Ausente das principais feiras da cidade, o alfenim só pode ser visto  recentemente em Natal através da  loja Delícias do Assu e do Vale, aberta ano passado no Potengi Flat. O proprietário Francisco das Chagas trouxe itens que até então precisava viajar ao interior para comprar. Além do doce de açúcar, a casa também oferece o biscoito ‘flor do Assu’ (com erva doce e pimenta), bolachas casquinha, queijo coalho, castanhas de caju, filés de curimatã e traíra, mel, pão Recife, entre outras iguarias do interior. Tel.: 3086-2726. 

A releitura da tradição no “Bolo Gentileza”

Baseado em suas pesquisas sobre os ingredientes regionais em extinção, os chefs Angelo Medeiros e Graça França criaram o bolo ‘gentileza’. A ideia surgiu em mensagens trocadas com a Chef Lúcia Soares, professora da Universidade Anhembi Morumbi. A intenção era fazer um bolo de fubá tradicional com creme de gemas e um toque de canela. A decoração com flores de alfenim completa o toque da criação. Mãos à obra:

BOLO

Manteiga 50g
Ovos 2 unid. pequenas
Açúcar 100g
Farinha de trigo 45g
Fubá de milho torrado 75g
Leite 50ml
Fermento químico em pó 5g
Sal 1 pitada

COMO FAZER:

1. Bater a manteiga com o açúcar em creme.
2. Acrescentar os ovos 1 a 1 misturando bem.
3. Adicionar os secos peneirados alternando com o leite.
4. Distribuir em forminhas próprias untadas e polvilhadas até ¾ da altura e assar à 170°C por 20 à 25 minutos.

CREME

4 gemas peneiradas
4 colheres de açúcar
4 colheres de sopa de água

Leve tudo ao fogo até engrossar, sem ferver.

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