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Buscando “o livro do mundo”

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Nivaldete Ferreira
([email protected])

Ele confessou que, tão logo se tornou um doutor entre os doutores, sentiu vontade de deixar esse Olimpo e ir em busca do “livro do mundo”. E foi.  Meteu-se a perambular por terras estrangeiras, a ter experiências com povos desconhecidos, gente de índole variada, culturas diferentes da sua, homens comuns e de exércitos -atitude parecida com muitas das que hoje são tratadas como pós-contemporâneas (tipo abandonar tudo e se largar no mundo, de moto, bicicleta barco ou a pé). E garantiu que não o fazia por cinismo em relação à glória que lhe abria os braços, apenas não queria ficar refém de um gabinete onde faria especulações próprias de um erudito, o que, para ele, teria por resultado “aumentar tanto mais a (…) vaidade quanto mais afastadas estiverem essas especulações do senso comum”. Disse da leitura (excessiva) de obras antigas, com suas histórias e fábulas: “É quase o mesmo que viajar, o conversar com homens de outros séculos”, e não esqueceu de advertir: “Mas quando se emprega tempo demais em viajar, acaba-se estrangeiro na própria terra”, assim se referindo ao perigo de, nas leituras,  se ignorar o presente em função dos eventos do passado (Nietzsche fez essa mesma crítica ao ensino alemão do fim do século XIX). 

Mas quem é esse que desejou aprender com “o livro do mundo”?… É o mesmo que sugeriu que sua autobiografia fosse acolhida como uma história ou até como uma fábula, pois tanto conteria bons exemplos quanto coisas reprováveis.  Pois esse que, sem ter moto, balão, bicicleta, barco ou avião, foi vagar pelo mundo (de trem ou navio)  e aprender com os outros homens, os não doutos,  é o autor do “penso, logo existe”, que ele justifica: “para pensar é necessário existir”. Ou não, Caetano?

Escrevo isto porque é tempo de livro -e de leitura, claro (um não tem sentido sem o outro, ou a outra). Em todos os lugares espocam projetos e campanhas ligadas (infringi a regra de concordância. Por quê? Porque sim) ao assunto. E, particularmente, porque sempre tive apreço por essa atitude de Descartes: deixar o “colegiado” de doutos para encontrar as pessoas sem títulos acadêmicos e aprender com elas sobre o que pensavam, bem ou mal, em torno da vida, do mundão aí. Verdade é que ficcionistas hoje fazem isso, até ganham bolsa para permanência em outros países, contanto que retornem com uma narrativa que se passe na terra onde foram viver por quatro ou seis meses, talvez um ano. A publicação é certa, faz parte do contrato.

Voltando a Descartes, acho que, se vivesse hoje, ele gostaria de encontrar leitores como o mecânico Alberto e o taxista José, ambos trabalhando em Natal e lendo muito. Por isso mesmo fazendo parte, de modo especial, do “livro do mundo”. Diferenças à parte, o bibliotaxista José também não quis ficar preso a uma sala de trabalho.

Nivaldete Ferreira é professora aposentada pelo departamento de Artes da UFRN-Natal. Escritora. Também compõe e fotografa experimentalmente.

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