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Cantos, batuques e danças de terreiros (10)

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Dácio Galvão [ [email protected] ]

A migração de gêneros por apropriação da poesia oral contida nas várias expressões artísticas da chamada cultura popular, através dos mestres detentores de saberes seculares, é curiosa e subversiva. Ainda mais quando se identifica se flagra uma dada herança do romanceiro ibérico se revestindo de nova roupagem e passando a compor liturgia de rito caracterizada por “mesa” na Jurema Sagrada. Herdeira da magia branca européia, do contributo religioso africano, kardecismo espiritista, do amálgama da pajelança indígena e do cristianismo popular povos de terreiros e da Jurema Sagrada continuam fazendo trocas, absorções, reelaborações em várias direções. Trocando em miúdos: há um famoso romance, Juliana e D. Jorge, que por tradição mnemônica continua vivo cantado e decantado nos interiores nordestinos. Para confrontar os dados comparativos vejamos a versão de José Mamede. Ela foi coletada por seu filho, Helio Galvão, no ano de 1945. Consta no livro “Romanceiro ibérico: estudos e pesquisas”, 1994. Está lá transcrito. O romance: “- Deus te salve Juliana / no teu estrado assentado. / Deus te salve, D. Jorge, / no teu cavalo montado. /- Dom Jorge eu ouvi dizer / que estavas para casar? / – É verdade, Juliana, / Venha te desenganar. / – D. Jorge, espera aí / enquanto eu vou ao meu sobrado / buscar um copo de vinho / que para ti tenho guardado. Juliana, Juliana, / não me faças falsidade, / olha que somos parentes / somos primos de verdade. / – Juliana, o que me destes neste teu copo de vinho / estou com as rédeas na mão / e não enxergo o meu Russinho? / – A minha mãe bem pensava / que seu filho estava vivo. / – A minha também pensava que tu casavas comigo. / Acabou-se acabou-se O cravo de Alexandria, / meu Deus com quem casará / a moça D. Maria?” Esta versão sofreu um releitura interpretada nas vozes cantoras categorizadas de Ceumar e Marcelo Preto. São acompanhadas por Gereba Barreto empunhando violão e viola de10 cordas; Zé Gomes no rouquenho da rabeca e Toninho Ferragutti na cama da sanfona. O disco compacto que contém a faixa é o “Toques & Cantares de Tibau do Sul”.

O antropólogo Luiz Assunção garimpou a linha juremeira “Luziara” no Centro Espírita Caboclo Aracati. Foi justamente na pesquisa de campo que fez para o CD “Pontos de Jurema” em 2008. Num passeio breve e panorâmico transitado em territórios criativos de áreas urbanas periféricas da cidade de Natal esse material recolhido viria a se inscrever e se constituir num primeiro registro sonoro mapeando dispersas e importantes células rítmicas do canto, da dança e de batuques. No total somamos vinte e nove pontos de Jurema. Matéria bruta para a diversidade religiosa simbólica. Os pontos da Jurema Sagrada são fontes alimentadoras da indústria cultural. É bem traduzida na voz da maranhense Rita Ribeiro parceira de Zeca Baleiro. Quando ela lançou o CD “Tecnomacumba” trouxe a faixa que explode no rompante tecno entre distorcidas guitarras elétricas: “Jurema / ô juremê ô juremá / É uma cabocla de pena / filha de tupinambá / Rainha das águas e areias / nunca atirou pra errar…”

A linha juremeira “Luziara” faz o seguinte relato: “Para onde vai Luziara? / Tô indo para meu sobrado. / Eu vou levar taça de vinho / para seu homem casado. / Oi, bebe, bebe Luziara / Oi, bebe, bebe deste vinho. / Mas o vinho que tu me destes / estava envenenado. / Ele, morreu Luziara! / Ele morreu e te deixou / Ele não ficou comigo / Mas também com a outra não ficou.” A voz solo é do Pai de Santo Cleone Guedes Barbosa. Coro de respostas com Ana Lúcia, Nina Rosa, Kleiton Pinheiro, Ana Paula Leite, Dona Josefa Ribeiro Angélica Oliveira. Nos tambores ou “illus” o Ogã Daniel e Klebinho Ogã.

Os personagens do romance “Juliana e D. Jorge”, e da linha “Luziara” apontam para caminhos semelhantes. Sobretudo na dramaticidade comum da temática.  Traduz obsessivo resquício do paternalismo monogâmico que resulta em ciúmes tendo conseqüência no crime passional. Nos enredos o desejo das personagens femininas é compulsivo na exclusividade afetiva do companheiro, do marido. O meio: o vinho. A arma: o veneno. No iberismo romanceiro o aspecto da consanguinidade como fator incestuoso é impeditivo para o relacionamento afetivo matrimonial incompreendido por Juliana que termina assassinando D. Jorge.  Na catimbozice carece igualmente o suporte emocional. Não segurando o triângulo amoroso o desfecho termina trágico com a morte do companheiro, do “homem casado”. A melodia dos primeiros versos é correspondente a um e ao outro cantar. Logo depois o ponto adquire rítmica afro de sons rituais tribais oriundos já da influência do Candomblé. O instrumento litúrgico da tradição da Jurema é o maracá. Marcantemente indígena. Na gravação a que nos reportamos os tambores repicam e estimulando o tom o clima propiciador do transe mediúnico. 

O diretor e roteirista potiguar Augusto Ribeiro Júnior fez no filme o “Boi de Prata”, filmado em Caicó, Natal e Rio de Janeiro em 1978 e lançado em 1980, emblemática cena caatigueira aonde a beberagem da Jurema é consumida e o Catimbó é aludido. É mais um respeitável conteúdo estético que se estriba nessa perspectiva da simbologia sincrética. Canta Pai Jeová Brasil: “Jurema é minha madrinha / Jesus é meu protetor /A Jurema é um pau sagrado / Aonde Jesus orou.” 

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