sábado, 20 de abril, 2024
25.1 C
Natal
sábado, 20 de abril, 2024

Cantos, batuques e danças de terreiros (7)

- Publicidade -

Dácio Galvão [ [email protected] ]

O Pastoril é dança profana de terreiro. Louvação sacra ao Menino Deus. Dentro dos três principais ciclos celebrativos incluindo aí o carnaval o junino e o natalino ele se encaixa dentro do último.  Contextualiza-se num barroquismo. Podemos categorizar o brinquedo num sequestro do barroco popular. Os cantares são vocalizados em “jornadas” ou “partes”. Se exaltam em coro componentes dos dois cordões de que se compõem. Tem mais o palhaço. Persona bufa masculina. Louvam dono do terreiro da casa e o Messias: “Dono da casa o senhor me licença / para o meu Pastoril brincar / que nós viemos foi adorar / Jesus nasceu para nos salvar!” Sanfona zabumba e triângulo é a orquestra. Auto? Dança? Canto? Música? Poesia oral? Saga teatral poética-musical? Pode ser. O percurso, o enredo: dos terreiros nordestinos até Belém, da Judéia. Alegre musical. Marchas maxixes… Requebros. Loas leilões. Reelaboração nacional de autos peninsulares ibéricos abolindo roteiro fixo e invariante quando comparado Pastoril a Pastoril.

Estudioso do assunto, o alagoano Théo Brandão o visualiza nos “antigos autos portugueses, que eram formas de dramatização medievais, com a mesma estrutura dos autos de Natal de Provença, sul da França”. A etnomusicóloga Dinara Helena Pessoa aponta a etiologia do Pastoril oriunda “de autos vindos da Península Ibérica, traduzidos pelos portugueses durante a colonização” e “das canções natalinas espanholas denominadas villancicos (muitos de caráter profanos), frequentemente escritas em galego-português”. Aqui no Brasil, a pancada híbrida afrodescendente foi grande! Tem uma jornada que diz assim, cheia de malícia: “A folha do vatapá se pisa bem picadinho / se bota com dedo na boca do meu benzinho. / Ah como é bela as pastorinhas / hoje aqui outra não há / que saiba fazer quitute / é do vatapá, é do vatapá”.

 O Pastoril oscila nas caracterizações, no número de componentes detalhes da indumentária, adereços formação orquestral coreográfica e nas “partes”. O “Velho” configurando o Palhaço, por exemplo, pode vir a ser o “Pastor” portando cajado ou a “mandioca”. Sempre cheio de sacanagens. Entretanto coincidem personagens e dada estrutura pontual: a Mestra, Contramestra, Diana, Belo Anjo, Cigana, Camponesa, Borboleta e no posicionamento dos dois Cordões que formam duas filas indianas de Pastoras. Multicoloridas nas fantasias, há a predominância de duas cores.

O encarnado liderado pela Mestra e o azul pela Contramestra. Perfilando o “Cordão Encarnado” e o “Cordão Azul”. Os tons de cores ressignificam: são votivas. Respectivas de Nosso Senhor e de Nossa Senhora. Em outras manifestações, essas mesmas cores podem representar os “partidos” de Cristãos e de Mouros no riquíssimo universo imaginário de cultura tradicionalizada, como nas bandas de Congos.

A jornada de abertura é animada e insinuosa: “Chegou quem vocês queriam / as pastorinhas que aqui estão! / Recebam rapaziada o nosso bem, nosso coração!”. A da despedida, evoluindo em círculo e mãos, acenando adeus: “Vamos embora que a noite é tarde / quantas saudades levarei no coração. / Adeus, meus partidários. / Adeus, que eu já me vou. / Adeus a cidade linda / Adeus até amanhã. / Óh, linda flor! Oh, linda flor!”.  Entre elas, várias outras incluindo as de louvamento (“… Que nós viemos foi adorar / Jesus nasceu para nos salvar”) e autoproclamação: “Tava sentada numa pedra fina / me embelezei com uma fita azul”. Pode variar em número de quinze à quarenta. Depende do fôlego. A “chamada” do Velho Palmeira, que na verdade é o entrar em cena do palhaço, acontece depois da finalização da terceira ou quarta parte: “Chamada do Velho Palmeira / que ele é madeira em qualquer lugar. / Marchamos de frente a frente / e marcamos o passo e sabemos dançar. / Viemos as pastorinhas / alegres e contentes / com a chegada dele / alegra a toda gente.” Palmeira se encaminha zombeteiro ficando na frente dos Cordões dançando perto da Mestra, da Diana, Florista e Contramestra. Proseia solta loas adentra aos Cordões fustiga as Pastoras arrebata risos. A figura da Diana, mediadora dos dois Cordões, é ponto pacífico nas diversas formatações. O Pastoril da mestra Lídia, das Cabeceiras, tem o potencial de renovação impressionante. Gravou parte do vasto repertório no disco compacto do Projeto Nação Potiguar e é referência obrigatória no gênero no Rio Grande do Norte. É dessa água que bebemos há alguns anos. Nascida e criada à beira das Guaraíras. A casa olhando para na direção daquele “mar”. Discípula das noites pastoris de Seu Aristides, onde brincou e apreendeu saberes. Hoje, ativa, repassa o assimilado às novas gerações não muito interessadas.       

O Pastoril é brinquedo pertencente aos Reisados. Segmento aonde se insere o Boi de Reis, a Chegança, o Fandango e a Lapinha. Ligadas ao cristianismo, ao Natal, nascimento de Jesus Cristo, na data de 25 de dezembro. Data instituída pelo Papa Júlio, no século XI. Vai até 06 de janeiro, dia dos Santos Reis: Baltazar, Gaspar e Belchior. Essa é a principal base de sustentação do arquétipo cristão no auto: a vinda, o anúncio de Jesus de Nazaré ao mundo terreno. Mais fragmentos da doutrina cristã na recepção popular.

 Comuns aos estados nordestinos, aqui os Pastoris estão ativos em vários municípios: Pedro Velho, Nísia Floresta, Tibau do Sul, São Paulo do Potengi, Parnamirim, Natal alterando fases de apogeu e de declínio. Aparece, desaparece, reaparece. A Mestra Lídia, também brincante de Drama e Pastora há mais de cinquenta anos, informa o seu modo de brincar, de amestrar: Cordões compondo número mínimo de seis pastoras, Mestra e Contramestra à frente e entre os Cordões, a Diana e a Florista. A Borboleta e a Estrela, Cruzeiro e o Palhaço desenvolvem coreografias peculiares. A voz solo é circunstancial. O coro é prevalente. Então, na viagem musical rítmica, se constrói o lírico, o deboche, o sensual, o grotesco e o sagrado. Há um dado momento em que as pastoras, de mãos postadas, se ajoelham e por instante ficam contritas. A jornada da Borboleta é a mais popularizada. O compositor Alceu Valença fez, no seu primeiro LP, “Vou danado pra Catende”, recriação definitiva: “Ela é uma borboleta / pequenina e feiticeira / anda no meio da noite procurando quem lhe queira. / Minha camisa foi manchada de vermelho / tem um beijo desbotada / de batom e de carmim. / E a feiticeira tem a boca encarnada / tem um beijo e uma dentada / sempre guardados pra mim. / Eu procuro a borboleta / feiticeira descarada / pelo batom da camisa  / pela marca da dentada”. No Pastoril de Lídia, a versão se canta: “Borboleta pequenina / saia fora do quintal. / Venha dançar nesse palco / Hoje é noite de Natal. / Eu sou uma borboleta pequenina e feiticeira / eu andava no meio das flores / procurando quem me queira”.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas