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Carta à neblina

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Nivaldete Ferreira
([email protected])

Cara e bela neblina,

Então você veio e jogou, por pouco tempo, seu véu semifosco sobre Natal, que foi comparada a Londres (Campina Grande sempre teve névoa, a Serra do Martins também…). Correram a dizer que a culpa é das fogueiras…, que aquilo era fumaça das fogueiras do S. João. As coisas andam assim, neblina. Síndrome de culpabilização. Nem as fogueiras juninas, em vias de extinção, escapam.  Mas você fez bem em dar o ar da graça. De repente a cidade ficou meio invisível, e assim, como ninguém via ninguém nem coisa nenhuma, nesse pouco tempo não houve qualquer violência.  Desculpe se falo disso a você que é tão delicada, mas é inevitável, embora saiba que, neste caso, falar não resolve, apenas alivia o espírito.  Pois é. Ao contrário de você, tão leve e passageira, a violência aqui está cada vez mais à vontade, louca e assídua (quando as pessoas saem de casa abraçam com mais força as que ficam). Claro, a situação não se resolverá diminuindo-se a idade penal. Discute-se isso na tv, nos jornais, nas redes sociais, nas pessoais e por certo até nas redes de pescadores, pois o assunto é de importância clamante. Mas o que também causa espanto é que se fica nisso, discutindo o já discutido e, quando se sabe de mais um horror, todos balimos lamentações. Assim mesmo, como ovelhas…, sem exigir dos gestores da Pátria, em todas as instâncias, medidas capazes de dar outra destinação a essa energia juvenil que sangra em si mesma e sangra o outro, toma, fere e mata de surpresa e… morre também, uma só vez mas muitas vezes. Não sei se é ingenuidade pensar assim, mas acho, bela neblina, que gestores são eleitos para resolver e prevenir problemas da sociedade, e certamente eles sabem o que é necessário fazer em cada lugar para desestimular e fazer cessar o programa da violência, que vem de longe mas está dando as caras como naquelas superposições fotográficas em que se veem as sombras de mil rostos. Os gestores sabem o que fazer, sim. E não fazem talvez porque não se reconhecem como os maiores responsáveis pelo funcionamento  ao menos razoavelmente equilibrado da sociedade; porque geralmente se embriagam com o poder e ficam tropeçando em negociações para nele se manterem e… esquecem (a grande maioria) quem os pôs lá. Quando você se foi, neblina, pudemos, por exemplo,  ver de novo os Centros de Atenção Integrada à Criança-CAICs, construídos há pouco mais de vinte anos e deixados ao abandono (dinheiro no ralo), além de edificações ociosas que bem poderiam servir a projetos de formação escolar e iniciação profissional desses que seguem aprendendo, com os ‘de maior’, técnicas de violência com todas as previstas alternativas de sucesso, e também se inspirando nos que praticam corrupção, desde a mais pichosa e  robusta à mais miúda, aquelas postas em prática por ‘pessoas do povo’ no cotidiano, desde o moço que aluga ao colega a declaração (muitas vezes ficcional) de que o pai está internado no hospital, e assim justifica o pedido de ajuda financeira de porta em porta, até aos sabidos subornos.  Deu-lhe mal-estar, neblina?…  Então vamos falar de coisas positivas e possíveis. Escolas padronizadas BSB (boas, simples e bonitas) poderiam (podem) ser construídas em todos os bairros, com quadras de esportes, oficinas, salas de dança, teatro, música etc. E professores com salários decentes. Dinheiro?  Ah, há, tem que haver. Uma redução nas vantagens dos parlamentares ajudaria um bocado… E não haverá para construir presídios? E não houve para monumentais estádios de futebol, a maior parte do tempo sem utilização e de custosa manutenção?  Sem falar que vão construir um parlash… Acho que me engasguei, neblina… Arrrg…. Um bilhão… Paro por aqui.  Ah, você acha que vão dizer, como lembrou aquela estimada e irônica moça: -a culpa é das caravelas!… É bem verdade. Bem verdade o quê?… Que digam isso mesmo.  Mas hoje só existem caravelas biológicas, aqueles organismos marítimos que podem queimar a pele da gente.  Não só elas, aliás. Há, e são piores, as caravelas gigantes do descaso político para com as causas urgentíssimas da sociedade.  Essas estão ajudando a queimar almas e vidas, diariamente e em qualquer lugar. Sei, sei, não precisa lembrar. Quem vai levar em conta conversa de poeta com neblina?… Mas bem que você poderia fazer alguma coisa: vir mais por aqui e deixar a cidade e todos nós invisíveis pelo menos uma vez por semana… Quem sabe, até conseguiria retirar o pó grosso que cobre a visão de tantos… Até mais ver.

Nivaldete Ferreira é professora aposentada pelo Departamento de Artes da UFRN. Poeta, autora do romance “Memórias de Bárbara Cabarrús”, em sua segunda edição.

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