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Comparação global

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Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador Regional da República

A Rede Globo, nos seus telejornais desta semana, mesmo sem querer, fez um feliz exercício de direito comparado. Falo das reportagens sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37/2011, por muitos denominada “PEC da impunidade”, que busca limitar – para muitos, fulminar – o poder de investigação criminal do Ministério Público. Em horário nobre, no Jornal Nacional, para fins de comparação com o nosso sistema de investigação criminal, foi dito: “em apenas três países a investigação criminal é exclusiva da polícia – Uganda, Quênia e Indonésia”. 

Deixando de lado o (des)mérito da PEC 37 (só não enxergam o óbvio os mal intencionados ou aqueles que, pior, já passaram da má intenção à prática), escrevo aos interessados na ciência jurídica, para registrar que a Rede Globo, referindo-se a sistemas jurídicos de outros países, fez uso explícito, mesmo que rudimentarmente, de um dos mais úteis instrumentos de trabalho para fins reforma da lei (incluindo, entre estas, a Constituição).

E, repito, fez bem.

Na verdade, hoje, mais do que nunca, com a globalização, a facilidade de comunicação e o maior intercâmbio cultural, o direito comparado deve ser um dos principais “parceiros” tanto do Legislador ordinário como do Constituinte derivado. E, quando falo de globalização, refiro-me àquele processo que tende a criar e consolidar uma economia mundial unificada, um único sistema ecológico, uma complexa rede de comunicações que abarca todo o mundo e, por que não, um padrão de Direito e Justiça comum a todos os povos civilizados (sobre esse fenômeno, William Twining, um dos mais proeminentes jusfilósofos da atualidade, tem um livro interessantíssimo: “Globalização e Teoria Legal”, Butterworths, 2000).

Tenho defendido, a partir de minha experiência de estudos no exterior, uma melhor e mais frequente utilização do direito comparado entre nós, como, entre outras coisas: (i) uma disciplina acadêmica a ser estudada nos cursos jurídicos; (ii) meio para se entender o Direito em geral; (iii) instrumento para melhor compreender o nosso direito interno; (iv) subsídio para fins de reforma legislativa.

Essa melhor utilização do direito comparado, aliás, pode se dar de várias maneiras e em vários níveis. Podemos realizar macro ou micro comparações. A primeira refere-se ao estudo de dois ou mais sistemas jurídicos inteiros (o brasileiro e o norte-americano em suas totalidades, por exemplo); a segunda, ao estudo de tópicos ou aspectos de dois ou mais sistemas jurídicos. Os tópicos passíveis de micro-comparação são inúmeros: (i) o desenvolvimento histórico dos sistemas jurídicos comparados; (ii) suas as bases ideológicas, econômicas e sócio-jurídicas (a criminalidade muitíssimo organizada no Brasil e na Itália, por exemplo); (iii) um dos vários ramos do direito nacional; (iv) as instituições ou conceitos peculiares aos sistemas; (v) as fontes do direito, os sistemas judiciais, as profissões legais (o Ministério Público no Brasil e na França, para ilustrar). E esses são apenas alguns exemplos.

Deve-se notar, ainda, que a comparação pode ser “horizontal” ou “vertical”, a depender se o enfoque recai sobre o panorama atual ou se são feitas incursões de caráter histórico nos sistemas ou institutos jurídicos comparados (a evolução constitucional do Ministério Público no Brasil e na Espanha, para dar um exemplo). Também é possível distinguir a comparação conceitual, que foca em categorias, conceitos, termos etc., da funcional, que trabalha as possíveis soluções para os problemas jurídicos através da experiência dos modelos analisados (por exemplo, tentando comparar as felizes experiências dos ministérios públicos do Brasil e do Reino Unido na investigação criminal). E por aí vai.

De fato, o direito comparado tem muito a nos oferecer. Através dele, questões fundamentais do Direito, incluindo a devida formatação dos nossos direitos penal e processual penal, podem ser respondidas. De maneira ao mesmo tempo integrativa e contrastante, o direito comparado nos ajuda a identificar os elementos essenciais dos sistemas jurídicos de outros países, suas semelhanças e diferenças para conosco, assim como seus pontos fortes e fracos. Ele nos mostra as soluções que estes sistemas deram para um determinado problema legal, e onde e como podemos fazer uso dessas soluções. Sem estar em competição com as tradições internas, mas em parceria com elas, o direito comparado pode, também, ter uma função de controle e ajudar o juiz a chegar a um julgamento mais equilibrado e crítico, graças a uma perspectiva mais ampla e multicultural do Direito.

Em resumo, trabalhando em conjunto com outros instrumentos, recolhendo parte do conhecimento global sobre determinado tema jurídico, o direito comparado tem um valor prático muito importante. É uma potente ferramenta para municiar os pesquisadores, os operadores do Direito e, no presente contexto, as pessoas diretamente envolvidas na reforma da lei com informações que são essenciais à inovação positiva da Constituição.

Evidentemente, não defendo a adoção de modelos estrangeiros sem qualquer critério, como querem fazer acontecer, sem revelar os reais motivos, os apoiadores de certas propostas. Afinal, não quero o sistema criminal de Uganda ou do Quênia transplantado para o Brasil.

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