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Deu zebra na repressão ao “Bicho”

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Isaac Lira – repórter

Entre todas as atividades ilícitas, poucas conseguem prosperar de forma tão tranqüila quanto o Jogo do Bicho. Jogadores compulsivos e eventuais se misturam tranqüilamente com trabalhadores e comerciantes pelas ruas de Natal e outras cidades sem ser importunados por nenhum representante do poder público. Não custa lembrar que o mesmo Estado que tipifica a atividade como ilegal, não cuida em fiscalizar o lucrativo comércio advindo do “jogo do bicho”.

Bancas de apostas são facilmente encontradas e, mesmo sabendo que jogo é ilegal, algumas pessoas até ficam viciadas na loteria popularO Ministério Público Estadual e a Polícia Civil não tem, nesse momento, nenhum trabalho consolidado a respeito do assunto. Segundo o promotor criminal Fernando Vasconcelos, o Jogo do Bicho só passa a ser investigado quando há ligações com outros delitos, como tráfico de drogas, contrabando ou sonegação fiscal. O titular da delegacia de costumes, Silvio Andrade, também não tem informações consolidadas sobre o assunto. “Estou aqui há 15 dias e a delegacia não tem nenhum trabalho prévio. Vamos fazer um levantamento de quantos pontos existem na cidade, mas não há previsão para finalizar esse trabalho”, diz Silvio.

Um dos motivos para o MP não investigar o Jogo do Bicho é o status dado a esse tipo de delito. Não se trata de um crime, mas de uma contravenção. A diferença consiste no fato de a contravenção ser um ato ilegal que não provoca tantos danos à sociedade. Por conta disso, as penas aplicadas aos contraventores são pequenas, facilmente substituídas por medidas alternativas. Os processos são direcionados para o Juizado Especial, com exceção daqueles que envolvem outras atividades relacionadas. Em 2008, houve a última operação acerca do jogo do bicho no Rio Grande do Norte, que prendeu 27 pessoas por envolvimento em várias atividades ilegais.

No vácuo aberto pela indecisão do poder público, a exploração do Jogo do Bicho não encontra barreira alguma, sendo realizada como se atividade fosse legal. As bancas de aposta estão espalhadas pela cidade. Na Ribeira, nos arredores da TRIBUNA DO NORTE, por exemplo, existem três pontos de jogo, num espaço de três quarteirões. Nas bancas, funcionários fardados e nomes para as “empresas” responsáveis pelos sorteios. Em Natal, são quatro, todas facilmente reconhecíveis nas ruas da cidade. As empresas de maior porte fazem o próprio sorteio e as demais aproveitam esse resultado.

A reportagem da TRIBUNA DO NORTE foi até uma banca de apostas e fez um jogo para demonstrar a facilidade do processo.

Duas funcionárias fardadas foram responsáveis pelo atendimento e explicaram com desenvoltura como funciona a “loteria popular”. Nas paredes, cartazes com os resultados mais recentes e telefones, tando da “central”, quanto uma linha somente para a divulgação de resultados. Os apostadores podem ficar cientes se foram ou não premiados na própria banca, no local do sorteio, pelo telefone ou até na internet. O recibo da aposta é impresso no computador.

Segundo o delegado Silvio Andrade, o levantamento de quantos pontos existem na cidade será realizado por policiais à paisana e baseado em denúncias. Não há previsão para concluir o trabalho. Além disso, alegadamente pelo pouco tempo na delegacia, Silvio não sabe informar como funciona a rede, bastante organizada, e nem se há ligações com grupos do Rio de Janeiro, como ventilaram outras fontes. “Ainda não sei nada a respeito. Além disso, é muito trabalho para pouca gente, então não sei quando o levantamento será concluído”, encerra.

A PM do Rio Grande do Norte, segundo o Coronel Alarico – comandante do policiamento da capital -, não atua na repressão a esse tipo de delito. “Caso sejamos provocados, estaremos apostos para qualquer ocorrência”, explicou, acrescentando que a responsabilidade sobre esse tipo de ocorrência cabe à Delegacia de Costumes.

Jogo é organizado e informatizado

Como toda atividade ilícita, é conveniente ao “Jogo do Bicho” passar despercebido. As bancas de aposta são simples, normalmente em pontos comerciais apertados e mais presentes nas periferias. Contudo, isso não passa de fachada. O jogo é bastante presente no cotidiano da população e em qualquer esquina é possível encontrar alguém com o costume de jogar, muitas vezes diariamente e em quantias significativas, na loteria popular. A atividade é tão obscura que os próprios apostadores não falam abertamente sobre o jogo. Quando avisados que se trata de uma reportagem, preferem falar sem identificação.

Francisco (nome fictício) afirma jogar no bicho há cinco anos. Camelô, ele se esforça para conseguir o dinheiro necessário para as três apostas diárias. “Quando tenho dinheiro, faço as três. Quando não, faço só uma mesmo”, diz, enquanto organiza a mercadoria no seu ponto comercial. A banca de apostas está ali na frente e naquela hora, perto do meio dia, estava prestes a divulgar o resultado do primeiro sorteio, que sai às 13h. “Isso aqui é coisa para otário, sinceramente. Eu jogo porque é o jeito, sou viciado. Se não jogar, fico cheio de comichão. Isso aqui é pior do que pedra”, afirma, comparando o vício do jogo, com vício em crack.

Esse discurso é uma constante entre os jogadores compulsivos. Todos ressaltam a inutilidade do ato de jogar, afirmam que perdem mais do que ganham, mas não deixam de fazer as apostas diariamente. Dos três apostadores entrevistados pela reportagem, todos afirmaram perder mais do que ganhar. “Ganho uma vez a cada seis meses. Jogo R$ 15 ou R$ 20 por dia, dependendo do quanto eu tenho”, diz Francisco. Os outros jogadores entrevistados fazem apostas menores, de R$ 5 até R$ 10. Histórias sobre pessoas com apostas mais altas são comuns. “Tem um rapaz ali numa loja de carnes que joga mais de R$ 200 por dia. É viciado, não sei como ele faz pra se sustentar”, diz Francisco.

Dentre os apostadores, forma-se uma certa cumplicidade, advinda da participação em um universo “marginal”. Os segredos de como jogar, os significados dos sonhos e detalhes sobre a rede que sustenta o jogo são compartilhadas. Exemplo: os três sabiam o nome e o endereço de um dos supostos donos do esquema de jogo na cidade.

Segundo eles, dois irmãos controlam a maior parte das ações em duas empresas. Francisco citou inclusive o local de trabalho de um deles. O nome do suposto chefe do jogo citado por ele consta do processo deflagrado em 2008 pelo delegado Odilon Tavares, então titular da delegacia de costumes. À época, o suposto envolvido foi indiciado por contravenção penal e crimes contra a ordem fiscal, segundo informações divulgadas pela imprensa na época.

A reportagem da TRIBUNA DO NORTE procurou junto ao Tribunal de Justiça informações sobre o processo, mas não encontrou nenhum. No Ministério Público, a informação é que o processo foi para outro Estado por haver ligações com esquemas em outras unidades federativas.

Loteria popular surgiu no Brasil no século 19

O jogo do bicho se trata de uma “loteria” tipicamente brasileira. Nasceu ainda no século 19, na época do Império, através do Barão de Drummond, João Batista Viana Drummond . O objetivo era levantar fundos para a manutenção de um zoológico de sua propriedade, localizado no Rio de Janeiro.

Para conseguir arrecadar o dinheiro, o barão criou uma espécie de loteria com sorteio semelhante aos bingos: bolinhas brancas em um globo. Foram listados 25 animais diferentes e a cada um atribuído quatro dezenas. O sorteio foi motivo de cobertura do Jornal do Brasil à época, no dia quatro de julho de 1892.

O primeiro prêmio saiu para o avestruz, coincidentemente o primeiro animal da lista do jogo. Já no início, houve repressão por parte da polícia, por se tratar de um “jogo de azar”, ou seja somente o acaso é responsável pelo sucesso ou insucesso do apostador.

Até hoje vários projetos para legalizar o jogo do bicho foram iniciados, assim como para criminalizá-lo definitivamente. Os especialistas não chegam a um acordo sobre qual o melhor caminho.

Alguns apontam a necessidade de legalizar para cobrar impostos e desvincular de outras atividades criminosas. Outros prefeririam criminalizá-lo de vez para facilitar a repressão. Uma coisa é certa: trata-se de um jogo centenário e muito popular. Convencer apostadores a desistir da “diversão”, será difícil.

Regras são complicadas, mas não afastam jogadores

Apesar de ser bastante popular, não é fácil entender o funcionamento do “jogo do bicho” para um iniciante. Funcionários das bancas de jogo afirmam que somente com o passar do tempo, e a experiência do jogador, todas as nuances da “loteria” são aprendidas. “O matemático que criou o jogo do bicho era um gênio”, diverte-se uma funcionária durante a aposta. Ela mesma se encarregou de ensinar à reportagem o funcionamento do jogo de azar.

São 25 bichos na tabela do jogo. Cada um deles tem quatro dezenas associadas, desde o Aveztruz, que vai de 01 a 04, até a Vaca, de 97 a 00. Dentro desse universo, o jogador tem várias formas de combinar os jogos. Pode-se jogar desde R$ 0,10 até valores altos. Não há limite. É possível apostas na dezena (acertar dois números), na centena (acertar três números) ou na milhar (acertar todos os números).  Outra aposta possível é a “do grupo”, ou seja você tentar acertar simplesmente qual o bicho será sorteado ao invés de jogar nos números. Quanto mais difícil a aposta, mais rentável o prêmio, que pode pagar até 20 vezes o valor apostado.

Durante a reportagem, o bicho escolhido foi a Vaca, com a milhar 1598. No dia do jogo, em nenhum dos cinco sorteios, o número foi contemplado.

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