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Devoção à música e humor até o fim

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Julio Maria e Roberta Pennafort – AE

O flautista Altamiro Carrilho morreu na manhã dequarta-feira no Rio, aos 87 anos. Ele havia descoberto um câncer no pulmão recentemente e não teve tempo de tratá-lo. Vinha com problemas no coração e dificuldades para respirar – justamente o virtuoso que tanto fôlego demonstrava em seu instrumento. Segundo os amigos, além do amor maior pela música, uma outra característica manteve até o fim: o bom humor.
Altamiro Carrilho se apresentou em mais de 48 países, inclusive gravou para BBC, lançou mais de 112 discos e compôs cerca de 200 músicas. O virtuosismo e a alegria  era suas marcas
“Fui visitá-lo no hospital há algumas semanas e ele continuava fazendo piadas. Estava com uma suspeita de câncer no pulmão. Foi operado duas ou três vezes por causa de problemas no coração. Depois eu soube que tinha recebido alta, e agora essa…”, lamentou o gaitista Mauricio Einhorn, com quem Altamiro tocou com frequência nos últimos 15 anos.

O empresário de Altamiro, Sérgio Pargana, contou que a devoção à profissão era tamanha que o próprio médico lhe recomendava tocar até quando fosse possível. “Ele sabia que a música era a vida dele. Altamiro não conseguia mais tocar duas horas sem parar, mas adorava fazer shows com seu conjunto, mesmo tocando um pouquinho só. E o público queria a presença dele.”

O último show havia sido no começo de junho, em Uberlândia (MG). Na ocasião, ele disse, em entrevista a uma emissora de TV local: “Eu tenho a impressão de que se eu parar com a música, eu paro. Desde criança, eu convivo no meio dos músicos.” Já estava debilitado. Em julho, ficou 17 dias internado. Foi quando o tumor foi descoberto.

Predestinado

Benedito Lacerda já era grande quando sintonizou na Rádio Tamoio para ouvir seus choros de todos os dias. Flautista sem concorrência por aqueles anos 40 e 50 do Rio de Janeiro, percebeu alguém tocando de um jeito muito parecido com o seu. Sem se lembrar de quando havia gravado aquilo, chamou a mulher para tirar as dúvidas. “Ôndina, quando foi mesmo que eu gravei esta música que está tocando no rádio?” Mas a mulher não se enganou. Quem estava tocando não era o marido, mas um garoto chamado Altamiro alguma coisa. “Vocês acabaram de ouvir Altamiro Carrilho!”, disse o locutor. Benedito não se conteve. Vestiu as roupas e seguiu às pressas para a Rádio Tamoio para conhecer o menino. Assim que o viu, teve certeza de estar diante de um prodígio.

70 anos de carreira
Disseram dele que se sentia tão à vontade numa schottische de Pixinguinha como num concerto de Mozart. De Benedito Lacerda, tirou um tanto do estilo. Do duplo staccato de Pixinguinha veio o ritmo, a brasilidade. De Dante Santoro, a capacidade de fundir duas flautas em uma.

O francês Jean Pierre Rampal disse certa vez que, para ele, existiam flautistas e existia Altamiro Carrilho. Vindo de uma tradição de flautistas brasileiros que começou no início do século 20, com Patápio Silva, Carrilho fez a aproximação entre a arte dos chorões nacionais com a obra de Bach, Mozart, Vivaldi, Beethoven e Chopin. Nunca torceu o nariz para o popular, entretanto. “Basta dizer que é minha aquela flautinha que aparece na música Detalhes, de Roberto Carlos.”

O flautista se apresentou em mais de 48 países, lançou mais de 112 discos e compôs cerca de 200 músicas. Entre 2009 e 2010, comemorou 68 anos de carreira com o lançamento de três discos, quatro DVDs e um longa-metragem. Acompanhou quase toda a galáxia da MPB com sua flauta: Francisco Alves, Orlando Silva, Caetano Veloso, Gal Costa, Chico Buarque, Bethânia, Linda e Dircinha Batista, Caubi Peixoto, entre muitos outros.

Menino ainda, em sua cidade natal, Santo Antônio de Pádua (RJ), tocava uma flautinha de bambu e integrava a Banda Lira de Árion (cujos integrantes eram todos da família), tocando tarol (um tipo de caixa de percussão).

Em 1940, mudou-se para Niterói, onde se empregou em uma farmácia Um dia, Moreira da Silva foi fazer um show ali e mandou procurarem por um flautista. Lembraram do menino que trabalhava na farmácia: Altamiro, então com uns 15 anos. Foi com Moreira que gravou pela primeira vez em disco, pela Odeon.

O flautista Benedito Lacerda interessou-se pelo talentoso garoto, e lhe ensinou alguns dos seus segredos: técnica, ritmos, mas também uma iniciação ao mundo dos maxixes, lundus, choros, baiões, valsas. Iniciou-se no regional de César Moreno e no de Canhoto, até organizar o seu próprio. Em 1949, gravou seu primeiro choro, “Flauteando na Chacrinha” (que, contam, inspiraria o nome do famoso apresentador da TV, Chacrinha).

Em 1951, já tendo acompanhado em gravações, na Rádio Mayrink Veiga, astros como Vicente Celestino, Sílvio Caldas e outros, apareceu no filme “Mulher do Diabo”, de Milo Marbisch. Nos anos 1960, internacionalizou a carreira, tocando na Inglaterra (onde gravou para a BBC), Alemanha, Líbano, Egito e México.

A carreira de Altamiro alternou fases glamourosas com outras revoltosas. Em 1955, quando seu regional ganhou a TV (a única vez em que o campeão de audiência foi um programa de música brasileira), viveu a glória. Depois, houve um período de desilusão com os rumos da música. Quando o iê-iê-iê e as guitarras elétricas dominaram o cenário, ele chegou a vender 12 de suas 18 flautas e destruir todos os seus troféus. “De 1962 a 1971, o músico brasileiro ficou totalmente relegado.

REPERCUSSÃO

“Para mim, ele foi o mais exímio, o mais virtuoso de todos os flautistas brasileiros. Dominava todos os recursos, as notas quebradas, interrompidas. Aquilo para ele era um brinquedo, não conhecia dificuldades.”

ZUZA HOMEM DE MELLO – CRÍTICO E ESCRITOR

“Quando eu estava começando com o Quarteto Novo, passei com a flauta desajeitada na boca. Ele me chamou e disse: ‘Mas menino, não é assim não, você está tocando todo torto.’ E me disse como eu deveria tocar. Altamiro não morreu. O carro em que ele estava apenas deu uma pifadinha e ele foi para o mundo dele. Um dia a gente se encontra.”

HERMETO PASCOAL – INSTRUMENTISTA

“Para mim, Altamiro foi o flautista mais importante da música brasileira. Ele conseguiu ser respeitado pelos músicos e pelo público. Era um showman, não gostava de apenas acompanhar. No fim de seus shows, tinha dificuldade para sair do palco. A plateia o chamava de volta várias vezes.”

AMILTON GODOY – PIANISTA

“A flauta era parte dele, então tudo ele fazia parecer que era muito fácil de tocar. E era um melodista incrível. Tinha sempre algo engraçado para falar, era o rei do trocadilho. Vou imitá-lo: ‘Altamiro vai fazer muita flauta’.”

GILSON PERANZZETTA – PIANISTA

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