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Eletrocultuado: Ouvi dizer uma vez que Black era louco

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Carlos Gurgel
poeta, produtor cultural – [email protected]

Penso que um dia, a vida virá recheada de verbos vísceras, daqueles, onde, pela manhã, se sente o gosto do mundo e dos seus quintais. O juízo, o tempo, assim, parece uma lanterna desgovernada. A cidade arde. Aparece por entre suas árvores, o canto que acorda a manhã. Veja: a lua já não mais está, lá. Ela, por horas, deixou de  ousar. Rouca, definha de poesia e de ares noturnos. Se acostuma com o silêncio e com os pássaros, que, volta e meia, procuram sentir o gosto amargo da manhã e das suas ilhas. Parece que hoje, falou alguém, o mar vai estar se despedindo das suas ondas e estrelas. Parece que o mar, entre tantos outros heróis, se vê, entre a luz que protege o voo dos morcegos, e a cabana no final da estrada molhada de chuvas e sonhos. Parece que o tempo e seus guarda sóis, seus girassóis, espera pelo desaparecimento de tantas discrepâncias, abandonando o leme da embarcação que já não consegue ver seu porto.

Era mais ou menos assim, que a circulação do ar, se mostrava. Anunciava ( a circulação do ar), a nossa própria respiração. A nossa própria sobrevivência. Era como um eterno recomeço. Recomeço da respiração ofegante. Bailando por fora das casas e tapumes. Ou por sobre o juízo dos seus bois e mascates. Mãe Luiza ardia. Palpitava fogueiras por entre suas casas e banheiros. Por entre suas praças e caçambas de lixos, de cabeças de peixes podres e rejeitadas, pelos anônimos famintos. Preciosos seres perdidos na nuvem lá do céu da boca, que gritavam por justiça, com as mãos e com seus dentes cariados e mortos. As calçadas de Mãe Luiza são como dentes afiados de um tigre. É dessa forma que em Mãe Luiza se vê e  se vive:  como um verdadeiro chamamento para o tropeço, para a possibilidade real de testemunhar a extrema unção de uma rotina raquítica e demente. Tudo tão assim, lascivamente frenético, e impossível de catalogar. Como se, o que se vê a noite, no outro dia, perde o brilho.

A nascença dos olhos ávidos por novas hastes, âncoras, bússolas e labirintos. Limar as ladeiras de Mãe Luiza não é fácil. Desvios acontecem todos os dias. Os seus moradores percebem a fragilidade das encostas, das suas escolas, das suas escorregadias e labirínticas ladeiras. Como protagonizando uma profecia.  Uma realidade que afunila a precariedade de paz pelas suas ruas. De uma profunda  e febril precariedade do que se possa conceituar como cidadania.

O poeta Blackout é fruto dessa quizumba. Daquela horripilante travessia. Odisséia talhada de nuvens escuras e salivas obscuras. De uma linhagem gramatical explosiva e vitaminada de vômitos. Blackout era noite, sempre foi. Na sua cor, no seu verbo, no seu caminhar. Compartilhar uma andança com Blackout, indiscutivelmente, solicitava de cada um, um par de óculos escuros, colares de infinitas raízes. 

Ouvi dizer uma vez que Blackout era louco. Depois, outros lúcidos provincianos, afirmaram o mesmo. Mesmo que essas categorias humanas, fossem pobre de espírito, o que mais me chamava atenção nelas, era a cumplicidade com seus ternos e gravatas tão perfumados, da imbecil e irrefutável beleza besta. Chamar, proclamar Blackout de louco, era o mesmo que dilacerar intuitivamente a capacidade de uma criança sonhar. O poeta, constantemente tinha que pedir para ficar na casa dos esquecidos, porque, a cada dia que lá passava, ele tinha o café da manhã, almoço, jantar. Quase ninguém na cidade abriu as portas do seu trabalho, para dar vez ao talento de Blackout.

Só uma vez, a rede Tropical, acolheu a poesia dele, em uma experimental onda dos seus transmissores, fazendo com que seus fãs, amigos poetas, admiradores, sintonizassem sua viagem; intergramática, interfanática hora. Transitei com Blackout pela cidade tantas e tantas vezes. Com aquele seu jeito menino. Com aquele seu litorâneo sorriso, Com seus improvisos gramaticais. Com seus posters prá lá e prá cá. Descer com Blackout a ladeira do Sol. Fazer fila na praia dos Artistas esperando sua melhor onda. Celebrar a lua e o sol de Nova Amsterdãm. Circular entre suas feiras e becos.

Blackout nasceu para sonhar. Um sonho novo e rítmico. Daqueles, onde, sem muita filosofia, se pega a luz do dia e se inventa a pirueta da rua, como se fosse um mágico, escolhido entre tantos, para celebrar seu orgulho e litoral. O poeta soube exatamente como polir essa atmosfera. Filho da ingratidão e diáspora, navegou o tempo todo, como um pescador que declara seu suor, lágrima e sorriso, ao canto do seu imaginário, psicodélica península, atmosfera onde se vê vertigens, origem de tanta euforia e sermão. Foi assim, que ele cresceu tropeçando, entre escadas e escalas.

Por cima das suas correrias e nuvens. Tão animalescas nuvens que leva o poeta, ao mundo onde, sem disfarce, ele sonha e ora horrores. Pesca e fisga seus poemas, como se fossem oráculos, obstáculos firmes, fortes, intransigiveis. Abucanhando com sua sede de viver, a armadilha recheada das ilhas e de tantas costas além mar. Além ar. Além bar. Além lar. Alimentou seus cantos na cartilha onde nada podia dar em nada. Exatamente quando partiu, eletrocutado que foi, por fios e mais fios de uma fiação elétrica.

Apostou suas vistas e suas visitas, em tudo que encontrava solto, livre, liberto. Foi marinheiro e navegador dos mares sem bússola. Palmilhou suas costas vermelhas, como quem se despede da lua e das suas circunvizinhanças.  Deu seu suor aos arrecifes das praias, das suas noturnas ondas. E soube ser ele: como um peregrino, recolhendo seus passos e paraísos. Multiplicando como fênix, os compassos de tudo que reflui noutra rotação. Amparando sua maleta, múltipla, eterna, confidente. E como um caleidoscópio, o poeta some. Levando com ele, a beleza de tudo que ecoa, tal qual ampulheta dos seus olhos e pulmões.

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