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Excesso

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QQ Coisa – Dácio Galvão [[email protected]]

Havia o Café São Luis na rua Princesa Isabel, reunindo nos finais de tarde pessoas sem compromissos com encontros agendados ou combinados. Chegavam tomavam seu cafezinho e iam embora ou os mais desocupados se postavam em pé na calçada e conversavam sobre o nada, sobre poesia sobre contracultura.

Um pouco mais na frente esquina com a Rua João Pessoa havia uma farmácia que a memória não me traz o nome, disponibilizando um expositor giratório de livros para vendas. Era uma espécie de estante rotatória com vários volumes. Lembro que comprei dois livros. Um deles reunia uma coletânea de textos ensaísticos de escritores que revelavam suas experiências com princípios ativos estimulantes sensoriais incluindo, entre eles, Allen Ginsberg William Burroughs, Timothy Leary, Allan Watts, George Andrews sob o título de Mandala. Na verdade uma coletânea editada em 1972 a cerca de experiências alucinógenas organizada pela homônima revista francesa. Compilação de relatos sensações desses escritores. Revelam aferições pessoais aspectos de alteridades subjetivas nos vastos campos psicológicos, artísticos, científicos e transcendentais. Um tijolaço. Livro grosso contendo muitas páginas.

O outro, um livrinho pequeno, formato livro de bolso, trazia na capa uma jovem moça ( Rúbia Matos ) e dois cabeludos ( Waly e José Simão ) com o seguinte título, segurando uma faixa: “ – FA – TAL – ME SEGURA QUE EU VOU DAR UM TROÇO”, de Waly Salomão, Capa da famosa dupla Óscar Ramos e Luciano Figueredo. Ele mesmo, o autor com Jards Macalé de Vapor Barato.A  música me inspirou na época a bordar o título, por uma costureira moradora da Rua Miramar, na Praia do Meio. Blusão Lee combinando com uma calça vermelha e um mocassim muito macio de enfiadeiras trançadas superbem transadas. E ainda, vestir nas noites outro blusão surrado verde oliva do exército brasileiro sob o ecoar de fragmentos poéticos: “eu não preciso de muito dinheiro graças da Deus… Meu casaco de general cheio de anéis… e vou tomar aquele velho navio”! Estandarte de há muito devorado pelas chamas de um mundo pós-utópico pós-tudo. A tropicália já era e a Poesia Marginal com Charles Peixoto, Ronaldo Santos, Chacal e Bernardo Vilhena estaria depois a valer. Aliás, em Lábia,1998, W.S. já dizia ”já não me habita mais nenhuma utopia”. 

Aquele livrinho adquirido na farmácia proseava e intextualizava. Era instigante. Lia trechos e não compreendia bem mas tinha algo ali provocando a curiosidade. O que salva a humanidade: a curiosidade. Salomão escreveu nos porões do Carandiru, preso que fora por porte de droga ilícita. Era seu primeiro de uma série. Aconteceriam: Gigolô de Bibelôs, 1983; Armarinho de Miudezas; Algavarias , Câmeras de ecos; Lábia; Tarifa de embarque; Pescados vivos.

Eis que chega – ano passado – em livro, na pegada das edições anteriores de Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski as obras completas do baiano de Jequié amante do Boca do Inferno, Gregório de Mattos Guerra, compilado não só os livros: poemas-letras espalhados em discos e periódicos numa correspondente programação gráfica visual hiperbólica. Tal qual os poemas, o poeta. Quem assina é Elisa Von Randow. Numa descrição rápida é mais ou menos assim: WWWWWWWWALYYYYYYYYYYYYYSALOMÃO em tipologia de cor branca circular com recorte sobrepondo foto do poeta impressa na capa dois. Na vertical parte superior da página vem o título POESIA TOTAL. Tudo em cima de um chapado azul. Na contracapa… Só vendo olhando com olhos livres. Elisa exarceba como o poeta que via na arquitetura de Donna Lina Bo Bardi, in memoriam, as “sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros sumidos no sorvedouro”. Sinestesias tristes melancólicas intangíveis.

A novidade paira nos ensaios reunidos sobre a obra salomônica nos escritos por um time de primeiríssima linha: Davi Arrigucci Jr. ( Algaravias ); Antonio Risério ( Qualyssignos ); Armando Freitas Filho ( Gigolô & Bibelôs: a poesia começa quando você chega ), Francisco Alvim ( Vale a pena falar de novo? ); Paulo Leminski ( Poesia-Limite ); Antonio Medina Rodrigues ( Waly Salomão e a lógica da pessoa ); Alexei Bueno ( Lábia, de Waly Salomão ); Walnice Nogueira Galvão ( Tarifa de Embarque ); José Miguel Wisnik ( Lábia ); Silviano Santiago ( Waly: entre Drummond e Oiticica ): Roberto Zular ( As algaravias de Waly Salomão ); Heloisa Buarque de Hollanda (  Gigolô de Bibelôs ) e Antonio Cícero ( A falange de máscaras de Waly Salomão ).

  A análise de Antonio Cícero é localizadora de uma posição estética sincrôno-diacrônica para o poeta amigo e parceiro de Helio Oiticica. Caminho próprio. Fora e dentro, num movimento dialético, da poesia concreta, do tropicalismo, da poética universal. Da Poesia Marginal, fora. O caráter espontaneísta e piadista estavam alijados da criação walyana. Fala o próprio Salomão: “Sinto-me muito preso, muito mal, desassossegado, em uma situação de desamparo, na categoria dos anos 70 ou poesia marginal”, acentuou. João Cabral e Oswald de Andrade, dentro noutro espectro. O filósofo defende o enquadramento da tese da teatralização: “prefiro empregar o conceito que ele mesmo elegeu: o da teatralização”, afirma. Aprofundando e se apoiando teoricamente na mitologia grega ( Proteu ), Cervantes, Shakespeare, Marx, Engels, Calderon de la Barca, Kristeva, Klibansky, Panofsky, Saxl, Hölderlin, Bakhtin, Nietzsche, Descartes vai destilando sumaríssimamente o lugar dessa poesia que reclama e indaga: “pois a questão-chave é: sob que máscara retornará o recalcado”. Ou seja, o repertório e a ainda breve análise contextual dentro da cronologia produtiva percorrida pelo “marujeiro da lua”, uma das personas do poeta, poderá e deverá ser ampliada.

A sensação final é a possibilidade do “Me segura” vir a ser montado, teatralizado. Que tal? É preciso ler Cícero. Desafiante empreitada onde se rediscute conceituações poéticas-dramatúrgicas.  

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