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Festa privada, patrocínio público!

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Luciano Ramos – Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP; Procurador do MPJTCE/RN

“Vamos celebrar a estupidez do povo/Nossa polícia e televisão.
Vamos celebrar nosso governo.
E nosso estado que não é nação…
Celebrar a juventude sem escolas/
As crianças mortas. Celebrar nossa desunião…
Vamos comemorar como idiotas/
A cada fevereiro e feriado.
Todos os mortos nas estradas/
Os mortos por falta
De hospitais…” (Legião Urbana, Perfeição)

Há anos, mal iniciado o mês de dezembro e irrigado por parcela do décimo terceiro, a cidade do Natal para por quatro dias e fica a ver a banda passar, cantando coisas de amor. As atenções da população, já escassamente voltadas para as mazelas vindas da Gestão Pública, caminham em outra direção. Atrás do trio elétrico, não se enxergam os canteiros sujos, as crianças sem escola, a segurança que nos falta nos demais 361 dias do ano. Nestes quatro dias, o estado de êxtase (alcoólico, afetivo ou sonoro) nos faz super-heróis, habitantes de uma cidade que tem muito a celebrar.

Infelizmente, na “segunda-feira de cinzas” a banda terá passado, e perceberemos com os olhos ainda miúdos com a ressaca da véspera que todo o sonho limitou-se a uma breve trégua (aparente), cuja pálida lembrança coletiva advirá do lixo e cheiro que são característicos dos dias seguintes a estas grandes celebrações a céu aberto. Prontamente, muitos recordarão o bem individual que estas festas lhes proporcionam, a celebrar a vida, após um árduo (nem sempre) ano de trabalho e estudos, “porque também sem um carinho, ninguém segura este rojão…”. Natural que o indivíduo busque esta válvula de escape, vocacionado que é para maximizar o seu bem-estar, impelido pelo princípio hedonista.

Mas este bem-estar individual (restrito a uma parcela da sociedade, é bem verdade), continuaria a sê-lo quando analisada a situação sob o ângulo coletivo? Os trios nas ruas, em datas que não são feriados e nas quais os não-foliões trabalham, produzem o mesmo proveito coletivo?

Estas reflexões fazem lembrar a teoria de John Nash, prêmio Nobel de Economia, exposta no filme “Uma Mente Brilhante”, a qual demonstra que o crescimento econômico advirá de atitudes que equilibrem o melhor para o indivíduo e para o coletivo, não bastando que cada um busque o melhor para si. O que nos faz perquirir se não há um ponto médio, que não sacrifique em demasia nem o individual nem o coletivo.

Realizar festas de rua tem um ônus coletivo muito grande, desde os transtornos ao trânsito e aos moradores vizinhos ao circuito, recaindo, sobretudo, no dinheiro público empregado para fornecer a estrutura necessária à sua efetivação, principalmente em períodos de déficit público profundo como o que a cidade do Natal ora enfrenta.

Sem sombra de dúvidas, o Carnatal gera lucros, movimenta a economia. Mas as empresas que os internalizam são também responsáveis por arcar com seus custos? Em que medida? Ao concordar com uma festa de rua deste porte e fornecer a estrutura sem a cobrança correspondente das empresas organizadoras do evento, o Município do Natal proporciona que as despesas essencialmente privadas sejam externalizadas de sua origem e recaiam no colo do Erário; em última análise, substanciais custos para a geração do lucro privado são coletivizados, calcados no dinheiro pago por todos nós, admiradores ou não da festa, mas que sempre somos chamados a pagar a conta.

Atingido este ponto de argumentação, invariavelmente o contraponto ecoa nos ouvidos com os mesmos decibéis dos trios que tocam enquanto este artigo é escrito, reverberando o pensamento de que o Carnatal impulsiona o turismo e gera aumento de impostos decorrentes da circulação econômica por ele proporcionada.

De plano, registre-se que não se tem ciência de nenhum estudo isento que afira precisamente este incremento nos quatro dias “momescos” fora de época, comparando as taxas de ocupação dos hotéis, bem como de ônibus e aviões que chegam a Noiva do Sol, neste período e nos demais dias de nosso abençoado verão. Muito menos que afirme com exatidão qual é o incremento de arrecadação do Erário em comparação com os dias e meses que lhe antecedem e sucedem. Tem-se uma sensação de alguns, jamais uma medição criteriosa e precisa capitaneada pelo Poder Público.

Porém, ainda que esta sensação seja verdadeira, estes benefícios indiretos seriam reduzidos em que medida acaso o Carnatal utilizasse espaços privados ao invés de bens públicos? Só podemos validar economicamente esta opção quando soubermos precisar o impacto de cada um dos caminhos possíveis, sobretudo equilibrando anseios individuais com as prioridades coletivas, principalmente em um município cujos médicos deixaram de atender recentemente por falta de pagamento do Poder Público, para ficar apenas em um serviço essencial.

Ainda que se chegue à conclusão de que esta festa de rua faz parte de nossa tradição, e que efetivamente mobiliza diversos setores da nossa sociedade, muitos contando regressivamente os dias que antecedem a sua realização, em que medida comprometeria seus supostos benefícios individuais e coletivos se a fatura dos gastos públicos fosse remetida para aqueles que dela obtêm lucros?

Começa a ganhar corpo o pensamento na gestão pública de que os geradores individuais e identificados de despesas públicas, as quais lhes proporcionam lucros, deverão ressarcir os cofres públicos. Diversas ações judiciais decorrem deste pensamento, como são exemplos as ações de ressarcimento contra planos de saúde cujos clientes foram atendidos na rede pública, bem como as ações movidas pelo INSS (inclusive coletivas) contra empresas contumazes na geração de acidentes de trabalho, os quais elevam, por via de consequência, os gastos da seguridade social.

Com uma simples ação indenizatória, atingiríamos o equilíbrio descrito por John Nash, o que proporcionaria que o individual e o coletivo pudessem celebrar na mesma medida e a banda, enfim, tocaria para todos. Com a palavra a Procuradoria do Município, zelosa guardiã dos créditos municipais.

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