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‘Gatos’ estão se espalhando por todos os bairros

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Margareth Grilo
repórter especial

As casas são de taipa, as ruas não possuem pavimentação. A iluminação, de uma ponta a outra da comunidade, onde estão instaladas 250 famílias, é a base de gambiarras que levam energia elétrica aos barracos, sem custo para os moradores. A água chega a um tanque, de aproximadamente três metros quadrados, construído no final da área, a partir de uma ligação clandestina, feita diretamente na rede de abastecimento de água do bairro Guarapes, zona oeste de Natal.

Desassistido pelo poder público, o assentamento Anatália, localizado no final do bairro Guarapes, zona Oeste de Natal não tem outra alternativa. Os assentados apelaram aos famosos ‘gatos’ para ter os dois bens vitais: água e energia. Mas engana-se quem pensa que essa prática está restrita às periferias das cidades e às famílias mais pobres. Os ricos também lançam mão da fraude para pagar menos, segundo informações das companhias e empresas que são alvos de fraude.

No caso do assentamento Anatália, a coordenação do Movimento de Luta dos Bairros (MLB), segundo uma das coordenadoras da área, Maria Silvanete da Silva, até já procuraram legalizar a situação da água e da energia, mas foi informada pela Companhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte (Caern) e pela Companhia Energética do Rio Grande do Norte (Cosern) da impossibilidade.
Do bairro do Guarapes ao de Ponta Negra, as redes de água, luz e até tv são fraudadas diariamente
“Eles disseram que não podiam fazer porque as moradias não serem legalizadas”, contou Silvanete. Ela relembrou que, por várias vezes, equipes da Cosern foram ao local para desligar os ‘gatos’. “Eles vieram até com a polícia”, contou. No dia seguinte, os ‘gatos’ estavam refeitos. “Se eles fizerem as ligações”, completou Silvanete, “a gente ia fazer cota de todo mundo para pagar, mas eles não aceitam. A gente sabe que é ilegal, mas não tem outro jeito”.

Na quinta-feira, dia em que a reportagem da TRIBUNA DO NORTE visitou a comunidade as luzes das ruas estavam acesas, mas o tanque que acumula água estava vazio. Segundo os moradores a vazão da água está fraca e não chega até o local. Com essa dificuldade, cinco moradores já fizeram ligação direta da rede para seus barracos. 

Segundo as duas companhias não há um perfil definido do fraudador, seja de água ou energia. A fraude, afirma o diretor comercial da Caern, João Maria de Castro, está presente em todas as classes de sociais, da “A à D”. A Caern já identificou desvios promovidos por hotéis, pousada, instituições de ensino e até indústrias. Nesses locais ocorre da ligação clandestina ao chamado “bypass”, um desvio que é feito antes do hidrômetro, para burlar o registro de parte do consumo.
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 No caso da energia elétrica, não há diferença. O gerente do Departamento de Manutenção da companhia, Marcos Antônio Neri, revelou que o ‘gato’ existe em todas as classes de consumo e em todas as áreas da cidade. Segundo ele, a companhia já flagrou desvios em comércio e industrias. A diferença é que, ao contrário do assentamento Anatália, esses consumidores não fazem gambiarras para ter energia, eles fraudam o próprio medidor ou fazem desvios, antes do medidor.

Só em 2011, a Cosern realizou 69 mil inspeções em unidades consumidoras dos grupos “A” (Alta Tensão) e “B” (Baixa Tensão). No grupo A estão inseridos consumidores comerciais e industriais e na classe B, os residenciais. A fiscalização identificou, em todo o Estado, 20.717 irregularidades, das quais 5.179 em Natal. Na maioria dos casos, houve corte do fornecimento de energia.

População desconhece legislação

Para o advogado potiguar Hallrison Dantas, especialista em Direito e Tecnologia, ouvido pela reportagem da TN, há muita desinformação quanto à legislação  por quem contrata o serviço. Por outro lado, “falta preparo das empresas para esclarecer os clientes quanto ao que pode e não pode ser feito”.

Embora não tenha dados estatísticos, o advogado afirmou que na Região Metropolitana de Natal grande parte do sinal de internet já é clandestino. “O que acontece muito”, comentou o advogado, “é que, com a ideia de compartilhamento, o cidadão adquire o sinal e distribui o serviço, rateando o custo da contratação”.

O advogado disse que quando isso acontece “há sim quebra de contato”, mas ele não vê nisso uma conduta que possa ser criminalizada. “Muita gente distribui sem intenção de lucro”, afirmou o advogado, ressaltando que “se a ação não vislumbra lucro, se não torna o compartilhamento um negócio, então isso desconfigura o crime”.

Segundo Hallrison Dantas, normalmente, nos casos identificados, os infratores terminam se comprometendo com o pagamento de uma indenização e respondem o processo em liberdade, “por ser uma situação que não oferece periculosidade”. Ele citou em Natal, o caso de um hotel que foi multado  recentemente por uso inadequado do serviço contratado.

O advogado disse que não vê com tanta gravidade o ‘gato net’ e que no caso do ‘gato de energia’ o prejuízo termina sendo maior. “No caso das empresas de internet ou mesmo TV por assinatura”, analisou, “eles apenas deixam de vender, de ter um contrato a mais. Já no caso de energia não. Uma outra unidade está consumindo clandestinamente e esse custo está indo para a conta de todos os consumidores”.

Ele concorda que a Anatel precisa evitar a proliferação do ‘gato net’ com fins comerciais. Existe um comércio legal e ele precisa ser protegido, “mas é preciso ter o cuidado para não tolher a liberdade do cidadão”. O advogado acredita que o preço fosse mais acessível e o serviço de melhor qualidade as pessoas não faziam esse compartilhamento ilegal. “Hoje, o que ocorre é que as pessoas não têm as condições financeiras para ter e cometem a ilegalidade”, analisou. Para  Hallrison Dantas “é mais fácil educar para não acontecer a ilegalidade, do que combater”.

É contra a lei que o raio de uma conexão wireless, por exemplo, ultrapasse o estabelecimento que contratou o serviço. A Lei Geral de Telecomunicações permite compartilhamento entre diferentes residências, sem caráter comercial, desde que o usuário tenha licença de “Serviço de Rede Privado”.

No Nordeste, vários casos de “gatos net” já foram identificados.  Em janeiro de 2011, um morador de Teresina (PI) que compartilhava sua conexão de internet com três vizinhos, por uma rede Wi-fi (sem fio) e foi multado em R$ 3 mil pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Agência detectou o uso de internet por diferentes usuários em mais de uma residência, com cobrança de taxa, e aprendeu equipamentos que garantiam a conexão.

O morador teve que prestar depoimento à Polícia Federal, sob acusação de que ele estava indevidamente funcionando como um ‘prestador de serviços’ de telecomunicação, sem autorização da Anatel.

Perdas financeiras chegam a R$ 42 milhões por ano

As fraudes aos sistemas de água e de energia elétrica representaram, em 2011, um prejuízo financeiro da ordem de R$ 24,2 milhões à Cosern e de R$ 18 milhões à Caern. Para se ter ideia, somente em 2011, as fraudes e o furto de energia elétrica responderam por perdas da ordem de 70 mil  megawatts/hora, o que representa 0,90% de perda em relação a energia ofertada.

Essa quantidade de energia seria suficiente para suprir o fornecimento das cidades de Mossoró e Parnamirim, juntas, durante um mês. No caso da água o baque não é menor. Já a Caern estima que, pelo menos, 51 mil imóveis, em todo o Estado, estejam sendo abastecidos a partir de ligações clandestinas. O volume de água não faturado chega, segundo informou a companhia, 714 milhões de litros de água, por mês – 7% do total da água ofertada. A água desviada daria para abastecer cinco cidades inteiras, como Assu, Pau dos Ferros, Caicó, Areia Branca e Almino Afonso.
Caern contabiliza que volume de água desviado ilegalmente chega a 714 milhões de litros por mês
Segundo o diretor comercial da Caern, existe uma predominância de ‘gatos’ maior na zona rural, onde as comunidades são atendidas por meio de grandes adutoras e a fiscalização é mais difícil tanto nos ativos, como nos ramais cortados. De acordo com a companhia, os “gatos”, buracos nas tubulações, geralmente  a machadadas, são feitos à mando de grandes proprietários rurais e com fins de irrigação. Em 2010, a Caern identificou o desvio de 5,4 milhões de litros de água da adutora Monsenhor Expedito para a fazenda do ex-prefeito de Riachuelo, Marcílio Pessoa.

A água desviada mantinha cheios dois barreiros e deixou sem água à época oito municípios.  Marcílio disse à época que “não era responsável por uma tubulação que fica exposta” e que não tinha motivos para fazer o desvio. A adutora abastece 30 municípios e mais de 200 comunidades rurais beneficiadas pela adutora. Em 2011, veio outra descoberta ainda maior, na adutora Jerônimo Rosado, em Mossoró.

Segundo a Caern, por dia, estavam sendo desviados 15 milhões de litros de água, que seriam suficientes para abastecer as cidades de Caraúbas, Areia Branca e Apodi, por um mês.  A Caern, que tem hoje 714 mil ligações, das quais 102 mil cortadas, vem trabalhando de forma sigilosa, nas zonas rurais e urbanas, segundo o diretor comercial, para flagrar ações danosas ao sistema. Na cidade, o ‘gato’ é mais frequente em ruas não pavimentadas.

TV por assinatura também é alvo

Nesses tempos, de novas tecnologias da comunicação, a internet e a TV por Assinatura também são alvo de pirataria. Segundo informações do supervisor operacional de Engenharia da Cabo Telecom, Carlos Siqueira, a fraude maior é verificada no serviço de TV por assinatura. O índice de ‘gatos net’, segundo ele, é da ordem de 6,84% num comparativo com a base de assinantes.

Em 2011, a empresa fechou o ano com 30 mil assinantes. Se for levada em conta essa base, o número de instalações clandestinas e alterações fraudulentas nos pacotes contratados chegaria a duas mil. Carlos Siqueira disse que o ‘gato net’ não tem classe social. “Ela acontece em todos os bairros da cidade e em todas as classes, da mais pobre a mais rica”, disse ele.

Na zona Sul, os bairros de maior frequencia de ‘gatos’ são Ponta Negra e Cidade Satélite. Outra região de alta incidência é a zona Norte de Natal. As novas tecnologias tem ajudado também no combate às fraudes, seja ela, na comunicação multimídia, na rede de água ou de energia. “Nós temos varredura em toda a rede e equipes que fazem vistoria, cada vez mais qualificada”, disse Siqueira, preferindo não esmiuçar os sistemas de monitoramento, por questões de segurança.

Em 2011, a empresa conseguiu pegar vários flagrantes, com apoio da polícia civil, inclusive com prisões efetuadas. No Rio Grande do Norte, os chamados “gatos net” estão na mira da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Algumas investigações já se desenrolam desde 2009. Na época, a Anatel identificou e fechou, com apoio da Polícia Federal, um provedor clandestino que funcionava na zona Norte de Natal.

Nos causos de fraudes, seja ele contra energia elétrica, água ou comunicação multimídia, o Ministério Público Estadual tem sido um aliado. Além de atuar nesse caso identificado pela Anatel, deu apoio a outros casos, como foi o da adutoras Jerônimo Rosado e Monsenhor Expedito.

No caso da energia elétrica e do fornecimento de água a fiscalização é feita pelas próprias concessionárias. Em casos críticos, onde há reincidência e em áreas  tidas como mais problemáticas, a polícia chega a ser acionada. O gerente do Departamento de Manutenção da companhia, Marcos Antônio Neri,  disse que a empresa tem investido fortemente em tecnologias que possam auxiliar a identificação de desvios e furtos e na instalação de medidores digitais, menos vulnerável às fraudes.

O trabalho de varredura da rede é constante e diário. “Temos equipes fiscalizando  diariamente, os pontos críticos e conseguimos reduzir alguma coisa”, disse. O furto ou a fraude de energia traz prejuízos não apenas para a concessionária, mas para os consumidores. A ANEEL – Agência Reguladora de Energia Elétrica autoriza incluir na tarifa parte do prejuízo financeiro das empresas decorrente de fraude.

Na Caern, o diretor comercial, João Maria de Castro, afirmou que a companhia tem fiscalizações sistemáticas em cima dos ramais desligados e nas áreas onde foi verificado recentemente desvio, como nas adutoras. Além disso, tem investido na instalação de macromedidores. O ideal é que todas as adutoras sejam automatizadas, como é a Monsenhor Expedito. Na ponta extrema, ou seja o consumidor, a  Caern está instalando micromedidores (hidrômetros). Hoje, a companhia tem 80% dos imóveis com micromedição. Em 2011 foram instalados 52 mil novos hidrômetros e a previsão é de instalar até fevereiro de 2013, outros 170 mil.

Bate-papo – Manoel Lucas Filho (Professor da UFRN)


“Caern não tem controle da rede”

O senhor concorda que o ‘furto’ de água é o que mais acarreta desperdícios na rede de abastecimento?

As perdas são muitas, principalmente, na rede, que é muito antiga. Mas o que está lesando o consumidor não é o furto. Existem pessoas desonestas, que fazem o ‘gato’, existem. Mas o problema é que a Caern não tem o controle da rede. Falta ter todas as macromedições (dos grandes volumes distribuídos) e a todas as micromedições (no usuário). Essa é medida mais facilmente, porque influi na conta do usuário, mas a macromedição, dos grandes volumes, ainda é falha. Por isso, o desperdício é tão grande na rede.

Por que o senhor diz isso?

É obrigação da companhia ter o controle da rede, desde a quantidade que é ofertada à que é efetivamente consumida. Até hoje, a Caern sequer tem o cadastro dessa rede. Se o Ministério Público pedir uma perícia para saber que fatores contribuem para o desperdício a Caern estará em maus lençóis.

O senhor considera alto o índice de água não faturada?

Os estudos que já fizemos apontam que, pelo menos, 60% da água ofertada não é tarifada, incluindo todas as situações de desperdício, dos vazamentos na rede ao furto de água. Nas adutoras, a companhia está trabalhando melhor, a partir das macromedições, mas o que se perde ainda é uma enormidade de água, principalmente nos chafarizes. Tem muito atravessador, de empresas de caminhões-pipa, ganhando dinheiro com isso. E a Caern, que é uma empresa pública, pagando a conta. O déficit termina sendo do Estado e do consumidor. É preciso que alguma providência seja adotada, com urgência.

O ‘gato’ seja ele de água ou de energia é sempre associado aos mais pobres. Mas essa não é bem a realidade, não é?

Na minha experiência de 35 anos como engenheiro na área de recursos hídricos, meu testemunho é de que os grandes furtos não são promovidos por comunidades pobres, mas pelos que detém maior poder, pelas classes mais abastadas. O pobrezinho lá no interior não faz isso. Ele anda dois, três quilômetros com lata na cabeça para buscar água. Mas o fazendeiro faz. Quem tem dinheiro, quem tem grandes irrigações de jardins e piscina, e que não é honesto, paga até um especialista, desonesto, claro, para fazer o desvio para pagar um quinto do que consome.

Porque é tão difícil combater e acabar com os famosos ‘gatos’?

Porque não se investiu em modernização da rede. A falta de controle, ao longo dos anos, terminou facilitando a ação das pessoas que são desonestas.

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