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Loca da mulher que se toca

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Carlos Gurgel – Poeta e produtor cultural [[email protected]]

Solícitos todos nós, percebemos que somos. Entre a lua da noite e o sol do dia. Solícitos, abucanhamos a primeira oportunidade, onde possamos expressar nossas escolhas, preferências. Foi assim, quando busquei saber sobre o labirinto da meditação. Foi assim, também, quando me revoltei, quando percebi que o relógio onde repousa a lassidão, lentidão dos nossos olhos, sofre. Foi assim, também, quando, ao atravessar a rua, me dei conta do medo dos outros. Assim foi, assim é, assim será. Temos o tempo todo a nos acompanhar. O tempo. Como uma intransponível, imensa tela, pigmentada de desejos, sonhos, divagações, revelações e desafios.
A pifeira pernambucana Zabé da Loca representa a riqueza sonora do semi-árido nordestino
A primeira vez que escutei Zabé da Loca, estava a caminho de Pipa. No carro de amigos, aquele dom, aquele som, me despertou. Procurei me abstrair da estrada, e fechei, cerrei os olhos. Era como se uma cantiga antiga amparasse toda essa modernidade, contemporaneiade por onde remamos. Me lembrei imediatamente do meu pai. Quando diariamente, ele saia de casa com um gravadorzinho, uma máquina de fotografar, e ai, registrava todos os sonhos de um ser maravilhoso, raro homem de um outro tempo.

Zabé me fez sentir, assim, cada vez mais próximo do meu pai. Aquele, daquele universo que transpõe barreiras, o açude da infância, e da ludicidade, ímpares. Somos o tempo todo, arrastados, exatamente para não sei onde. Por isso, acho, que a cultura popular e todas as suas irmandades, nos tornam impávidos. Como atabaques libertários e imprescindíveis. Ouvir Zabé da Loca, é, primordialmente, reconhecer em que chão pisamos. Sua música pífana e epifânica, é de uma translucidade sem igual. Ouvindo Zabé, parece que o mundo vira um moinho sem arrependimentos. De tantos luminosos cafés das manhãs e das noites. Na loca de Zabé, cabe todas as nossas loucuras, bem mais do que imaginamos saber. Por ela, por essa rota, por essa loca, nossa lucidez reverbera. Essa senhora, refaz o tempo todo, a magia de sermos sinceros, completamente épicos. Apropriadamente ela é minha rainha, no terreiro onde os mortais se jogam. Através de Zabé, e dos seus fraseados polvilhados de mantras ricos em inúmeros ecos. Como uma árvore retorcida de tanto querer crescer. O pífano de Zabé nos cura. O pífano de Zabé nos coloca novamente frente a frente, com nossos rostos, como vistos pela primeira vez. Assim, como uma grande ciranda, tal qual feliz ideia. Dessa aldeia onde, aos segundos, somos prova de fogo. Da labareda que consome o afeto que sumiu. Zabé é da loca e da remissão.

Mulher do chão batido, de uma libertária música. Zabé nos encanta porque o que ela toca, é pura essência de tantas antecedências. Zabé se toca. Ela admira ser feliz com sua música. Imprime um ritmo como se fosse uma senzala anunciando sua liberdade. Solfeja uma pancada na taba dançando uma ciranda paramentada de relíquias e enormes festejos. Evolui como uma rainha, coberta de caçuás, triângulos, atabaques, sanfona, fole, couros, xote, xaxado e baião.

Zabé reconhece o caminho por onde sua música reluz. Guarnece em pleno sol, sua garganta, língua, pés. Serve sua vida com tantas palmas, tal esteiras, para quem dela se encanta e sorri. No seu imaginário entre roçados e milho, aparece seu oratório revestido de raça, mugido do boi, lamparina, cabaça e pião. Pisa o barro como quem vai ao roçado e colhe letras e melodias. Arruma do seu jeito, a plumagem de uma nova e boa loa. Pega seu pífano e rebrilha seu querer. Sabe que sua terra, é uma estrela, uma aquarela. Sobe a serra e escuta a música dos bois, seus zumbidos. Reconstrói seus moinhos e pegadas. Chama acesa, convida seus devotos a uma nova melodia. Se levanta e dana-se a bulir com a alegria escondida da sua gente. Demonstra que sempre foi uma amante do côco e das suas raízes. Chama para o terreiro suas alegorias e fumo batido. Se alegra com seu bando, com seu povo. Sabe que representa um tempo, explicado de um modo especial de ser. Representa a resistência. A existência cantada de versos e pilões. De secas e clarões.

De poesia, lingua que corre solta, solando seus invernos e alpercatas. Então como uma mulher entre saltos e salmos, Zabé encanta. Sabe dos seus mistérios e das suas magias. Dedilha sua varanda, seu quintal, sua infinita capacidade de renascer-se. De polvilhar com seu ohar e coração, sua aldeia. Querida pelo luar, que alimenta sua voz e alma. Que alimenta as manhãs preenchidas de fubás, tapiocas, cajus, serpentinas e marujos. Zabé risca no chão onde vive, o sonho que persegue. O som que partilha com seus passos e imagens. Zabé é como um pouco de esperança. Uma vela acesa. Que vai iluminando os quintais que existem. Os quintais que resistem. Aqueles quintais que celebram as palmas, a existência do que ainda respira. Do que ainda ressoa, transpira, existe. Resina. Leite. Alumbramento. Pintado do sorriso e da face vivida de Zabé. Correndo pradarias. Enormes luas, loas, lendas. Enormes e preciosas sendas sonoras. Daquelas onde o coração parece sair do peito da nação que ela construiu e declara.

Zabé como um cajado de fé. De uma identidade de persistência rara. Recôndita. Esplêndida de prêmios do seu céu da boca. Bica que sacia a sede de uma infinita saudade. Alumiando a fogueira da rua que sumiu. Pífano esplendorosamente tanto. Relíqua como totem, fortuna da flauta que se constrói. E entre a sombra dos nossos vultos, Zabé se lança. Como a luz da vela que se benze. Como a escolha da aventura de ser feliz na sua roça. Lição de vida da sua criatividade que se espalha pelos confins dos sertões, que não morrem. Aquecem a lua. Recôndita. Imortal. Bela e intangível rota de quem descobriu o amor, e por ele, não se curva, engrandece.

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