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“Meu papel não é seduzir o leitor”

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A escritora Marina Colasanti demonstra toda sua versatilidade na própria escrita. Confessa adorar escrever conto de fadas, mas destaca que também se põe antenada com a realidade moderna, por isso mesmo diversifica as suas obras. Quando fala do gênero conto de fadas, Marina se empolga, explica minuciosamente e confessa que enveredou por ele “meio sem querer”. E para quem pensa que o conto de fadas está longe da realidade, a escritora logo desmistifica: “Ele (o conto de fadas), na verdade, é de uma realidade mais profunda do que o realismo. Ele lida com os sentimentos de base dos seres humanos, que são comuns a todos, a qualquer espécie”. Marina Colasanti observa que o conto de fadas trata de sentimentos que permeiam todas as gerações. O medo da morte é um deles.

A escritora marina colasanti não concorda com a teoria de que o papel do escritor é seduzir o leitorE qual a principal arma que Marina Colasanti usa para seduzir o leitor? “Não é meu papel seduzir o leitor. Meu papel é me seduzir, me convencer, fazer o que quero fazer, o que é imprescindível para mim. Eu só escrevo quando é imprescindível para mim”, responde de pronto. Mas não se pode entrevistar Marina Colasanti e não trazer à tona sua visão do universo feminino, até porque foi sobre as mulheres que ela já muito escreveu, além de apresentar um programa de televisão. A escritora destaca os avanços das mulheres que hoje já são maioria em cursos de pós-graduação. Mas ela traça uma forte divisão entre as mulheres da classe média e as pobres. Essas últimas, observa Colasanti, são responsáveis hoje pelo sustento da casa, devido à grande evasão masculina.

A convidada de hoje do 3 por 4 fala baixo, em um único tom. Demonstra tranquilidade e muita segurança. Com vocês, Marina Colasanti:

A senhora costuma dizer que escreve conto de fadas. Que conto de fadas é esse que vai para a escrita de Marina Colasanti?

Escrever conto de fadas faço há muitos anos e tenho hoje em dia uma parte relevante do meu trabalho nessa área, que não é muito comum. Hoje em dia há muito pouco contador de fada contumaz. O gênero conto de fadas é específico, não é historinha com fada e com bruxa. O conto de fadas é um gênero muitíssimo antigo, ele começa escrito no século I da nossa era, mas tirada de narrativas orais, portanto as origens perdem-se no tempo. É um gênero cujos textos e narrativas são fora do tempo da realidade e fora do espaço real. Eles acontecem no espaço do imaginário, a fórmula ocidental é o “era uma vez”. Era uma vez significa tira imediatamente do hoje. Eles (os contos de fadas) são de fundo mítico, eles devem falar para qualquer faixa de idade, eles não são literatura infantil, são para qualquer pessoa e tem leitura diferenciada para qualquer idade. Uma criança faz um tipo de leitura, lê determinados elementos e um jovem ou adulto encontra outros elementos porque eles são ricos no seu conteúdo.

O que lhe seduz mais no conto de fadas?

É uma boa pergunta. Comecei quase sem querer. Quando vi que tinha escrito um conto de fadas achei uma coisa estupenda porque eles são muito difíceis, são raros. Tanto é que estamos repetindo nosso universo clássico há séculos e séculos. É um privilégio da vida ter chegado a escrever contos de fadas. Eu soube, desde o início, que nunca mais iria parar. Eles são muito comoventes, ao fazer, mexem muito comigo. Não são textos gratuitos e me atingem muito profundamente. Não há nada de fundo prático, mercadológico. Quando fiz o primeiro livro era uma abominação falar em conto de fadas, todo mundo só queria realismo, realismo urbano, uma certa dose de crueza. Eu sabia que o livro teria muita dificuldade de mercado. De fato esperou cinco anos na gaveta, o primeiro livro. E eu já tinha editor para qualquer outra coisa, mas sabia que teria problemas com ele e tive até ser publicado.

O conto de fadas lhe traz mais emoção e aumenta seu desafio mais do que a escrita realista. Nessa ótica, seria um desafio também tirar o leitor da realidade crua e transportá-lo para o conto de fadas?

Vou começar pelo fim da sua pergunta. O mundo do conto de fadas é imaginário só porque não usa elementos do hoje que não seja um automóvel, mas ele, na verdade, é de uma realidade mais profunda do que o realismo. Ele lida com os sentimentos de base dos seres humanos, que são comuns a todos, a qualquer espécie. O automóvel pode não ser, o telefone celular pode não ser, pode ser nas montanhas que não tenha celular. Mas todos os povos, de todas as partes do mundo e de todas as épocas histórias têm medo da morte, tem inveja do outro, lutam para sobreviver, tem insegurança, tem desejo, tem fome. Esses centímetros, os sentimentos de base todo mundo tem e é com esse sentimento  que o conto de fadas lida. Eu chamo isso de realidade expandida. Uma realidade que é a nossa realidade maior, do que essa mesma. O seu celular vai estar ultrapassado daqui a seis meses, mas seus sentimentos em relação à morte são os mesmos da sua avó, sua bisavó, tataravó.

Será que os sentimentos são os mesmos de geração a geração? Eles não sofrem mutações, versões?

Eles sofrem adequações, adequando-se ao seu tempo. Mas o medo da morte, por exemplo, não tem variante. A morte é a morte. Tanto faz se você vai toda entubada no hospital ou se morre de fome, não interessa, todo ser vivo sabe que vai morrer. Esse sentimento é igual para todos e desde sempre. A força dos contos de fadas é que eles lidam com esse material. Eu preciso também trabalhar outros materiais. Eu preciso trabalhar com o pensamento na parte dos ensaios, textos teóricos. Eu tive uma atuação muito longa nas questões da mulher, mais de 20 anos trabalhando com isso. Eu preciso disso. Eu não posso viver só nos contos de fadas até mesmo porque eles são muito intensos e eu não agüentaria manter a voltagem constante, iria criar barrigas e eu perdia a qualidade do produto. Eu vou e volto a eles. Eu não escrevo um conto de fadas hoje, depois um poema, depois um artigo e um conto de fadas. Não. Quando decido eu vou escrever um livro de conto de fadas eu cuido só disso durante o tempo que for necessário. Acabou, eu encerro. O que pode levar cinco, oito ou dez anos. Eu preciso da alternância. Eu sou uma mulher moderna, eu preciso tratar do meu mundo também. Esse mundo mais reduzido, mais modesto que é a realidade imediata.

Qual a principal arma que Marina Colasanti usa para seduzir o leitor?

Não é meu papel seduzir o leitor. Meu papel é me seduzir, me convencer, fazer o que quero fazer, o que é imprescindível para mim. Eu só escrevo quando é imprescindível para mim. Embora eu seja uma profissional, agora estou com quatro livros para sair, mas eu só trabalho obedecendo necessidades minhas pessoais. Não tem nenhum editor pegando no meu pé, exigindo, implorando pelo amor de Deus. É o que quero fazer, quando quero fazer, é um chamamento, estou preenchendo necessidades minhas. Eu fico muito feliz que o leitor fique seduzido. Mas se eu pensar nele eu não chego na esquina porque não sei quem ele é, são muitos, diversificados, de partes diferentes do país e hoje em dia de outros países. Como eu posso tentar seduzir um leitor da Patagônia? Eu nunca estive na Patagônia. Não é essa a minha tarefa e nem é essa a minha preocupação. Agora agradeço a Deus se ele ficar seduzido depois.

Seria esse o mistério da escrita: a senhora não conhece a Patagônia, mas seduz quem lá mora, por exemplo?

Esse é o mistério da comunicação ou, mais ousadamente, o mistério da arte. Eu estou pretendendo, deveria não dizer isso porque as pessoas não dizem essas coisas, mas estou pretendendo fazer arte. Minha busca na vida é pela arte, não pela comunicação. Já fiz muita comunicação porque trabalhei em imprensa muitos anos da minha vida. Eu adorava e eu amo. Se estou escrevendo crônica estou fazendo comunicação. Até quando eu trabalhava em publicidade eu fazia comunicação. Televisão  é comunicação. Mas quando sento para escrever eu quero fazer arte.

A senhora vive da escrita. Isso é uma conquista para quem vive no Brasil?

Realmente, eu vivo há muito tempo da escrita. De fato é uma conquista. Há muitos anos vivo de escrever, mas não escrevo atendendo a solicitações tipo “escreve um texto sobre a primeira menstruação”, “sobre vovó morreu”. Nem morta! Mais fácil a vovó morrer do que eu escrever o livro.

A senhora escreveu muito sobre o mundo da mulher. Qual a visão de Marina Colasanti hoje sobre o universo feminino?

O Brasil é um país complicado porque não existe a mulher no Brasil. Existem as mulheres no Brasil. As mulheres da classe média e média alta, sobretudo as da média que estão mais ligadas, a média alta está lá com seu dinheiro, aproveitaram muito o resultado do trabalho desenvolvido. Hoje em dia as mulheres são presença maior que os homens nas universidades, mais do que os homens fazem pós-graduação no Brasil, o que é muito importante porque hoje o Brasil já tem o pensamento teórico das suas mulheres consignado. Antes elas faziam universidade porque era elegante, chique e para encontrar meninos. Era um mercado matrimonial muito bom. Hoje elas fazem pós-graduação mais do que os homens, elas têm que escrever tese e nosso pensamento teórico fica consignado. As mulheres estão avançando no mercado de trabalho e alcançando, ainda é pouco, mas estão chegando a postos mais altos dentro das suas empresas. Na política é um desastre. O Brasil é um dos últimos países do mundo em presença feminina relevante. Percentualmente nossa presença política, a quantidade de mulheres no Congresso em relação ao número de mulheres é muito baixo.

A senhora é favorável à cota que determina um número mínimo de mulheres candidatas?

Cota foi algo positivo, mas como tudo, vamos falar de Brasil, dribla. Você lança candidata, mas não investe nela. Você preenche a vaga, mas não coloca um tostão na candidatura dela. Mas pelo menos obriga a colocar a mulher e ela vai se empenhar a colocar a cara dela de candidata em postes, paredes, em algum lugar e as meninas vão ver um número considerável de mulheres política que podem lhe servir como modelo. Portanto, uma coisa positiva existe. Agora da classe média para baixo o Brasil é um desastre em tudo. Um dos desastres maiores vejo em relação às mulheres. Hoje o Brasil tem uma quantidade de mulheres chefes de família que sustentam filhos, netos, netas adolescentes, grávidas, agregados, sozinho espantoso. Há uma evasão masculina gigantesca do que seria a família. Isso está se tornando, de maneira alarmante, uma normalidade nas nossas classes pobres miseráveis.

A que a senhora credita essa evasão masculina?

Há uma série de fatores. Teria que ser estudado mais a fundo, com pesquisa. Um a gravidez adolescente, cada vez mais comum na qual o menino não se sente minimamente responsável, nem a família da menina acha que ele seja responsável. E ela vai criar o filho sozinha. O segundo aspecto é a evasão do pai já mais velho, que em algum momento constituiu uma família e se cansou daquela e não se sente obrigado a depositar dinheiro e dar assistência aos filhos que deixou. Isso é terrível também em termos de estrutura familiar e modelo.

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