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Notas sobre o Direito na Bíblia

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Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador da República

A Bíblia  é, pelo menos para os cristãos (entre os quais, como católico, me incluo), muito provavelmente, o mais belo, relevante e revelador dos livros. Por em destaque quaisquer dos seus muitos ensinamentos é sempre algo extremamente instrutivo. Mas não é o caso, aqui, de se discutir os seus aspectos teológicos ou mesmo o seu valor como documento histórico. Isso deixo para os mais aptos que eu, seja porque dotados do conhecimento necessário, seja porque já premiados por Deus com uma fé que, infelizmente, como simples pecador, ainda não fui presenteado.

Acredito, entretanto, que é de certo interesse, mais ainda neste período de Natal, em que devemos celebrar o Cristo (seu nascimento, mas também o seu amor e o seu exemplo), traçar algumas linhas, neste espaço jurídico-literário, acerca do sábio conteúdo jurídico que a Bíblia também encerra. Evidentemente, não é possível tratar de todo esse conteúdo no espaço de uma crônica (e, reconheço, isso estaria além da minha capacidade, mesmo se mais tempo e espaço me fossem dados). E não é o caso, certamente, de se discutir os significados teológicos de expressões como “livre-arbítrio”, “pecado”, “misericórdia”, “perdão”, “redenção”, que constituem a base conceptual da Justiça Divina. Mais pé no chão e sem esquecermos que toda seleção tem um quê de discricionariedade, podemos muito bem selecionar uma passagem bíblica que tenha a mais íntima ligação com o Direito. Como estamos no momento de relembrar o Cristo, escolhamos o julgamento que levou à crucificação e a morte física do filho de Deus.

Não que a Bíblia não possua muitas outras passagens de fundamental importância para o Direito. Claro que sim. Há passagens, por exemplo, que tratam de questões jurídicas específicas, como é o caso, ainda no Gênesis, da injusta acusação sofrida por José (filho de Jacó), no Egito, pela mulher de Potifar (às vezes grafado Putifar), alto oficial do Faraó, de que ele a teria tentado seduzir. Afora a lição acerca da possibilidade de se dar guarida a falsas acusações (a que todos nós estamos sujeitos) e o registro da prisão em si de José, desse relato bíblico decorre o que se denomina hoje “Síndrome da mulher de Potifar”, que é, em linhas gerais, a circunstância de alguém acusar outrem de sedução ou mesmo estupro, falsamente, geralmente motivado por uma real rejeição.

Por certo que há, também, passagens que tratam de questões universais do Direito. Quem não se recorda que, já durante o Êxodo, no Monte Sinai, foi entregue por Deus a Moisés os “Dez Mandamentos” (que, para o Judaísmo, é uma pequena parte das suas 613 leis)? Para além da importância do conteúdo dos dez mandamentos, que aprendemos em nossa infância – para esquecermos, é verdade, boa parte dele, logo depois -, é fundamental lembrar que os mandamentos constituem-se em uma das primeiras leis escritas que a história registra. E quem não se lembra, já no período dos Reis, do grande rei Salomão, que a Deus pediu sabedoria para governar com Justiça? Salomão tornou-se o maior exemplo de sábio e justo juiz, ao decidir o caso das duas mulheres que afirmavam ser mãe de uma criança recém-nascida, ameaçando dividir a criança ao meio e assim obtendo da verdadeira mãe a permissão para entregá-la a outra mulher (que não ficou com o recém-nascido, é claro). Uma vez premiado por Deus, “todo povo de Israel soube dessa decisão do rei Salomão” e “todos sentiram um grande respeito por ele, pois viram que Deus lhe tinha dado sabedoria para julgar com justiça”.

Mas é do relato do julgamento de Jesus perante Pôncio Pilatos e das circunstâncias que o antecederam que podemos retirar as mais inquietantes lições. Esse relato é emblemático ao nos mostrar, sabiamente, como a Justiça não deve ser feita, a começar pelo ato de traição de Judas Iscariotes e suas trinta moedas de prata. Mostra-nos, durante e após o primeiro julgamento de Jesus, perante o Sinédrio judeu (na verdade, Jesus foi julgado duas vezes), seus grandes sacerdotes, Anás e Caifás, decididos, a todo custo, a levar Jesus à crucificação (coisa que só um julgamento pelas autoridades romanas podia implicar), sem qualquer preocupação com a sua culpabilidade, dando guarida a falsas acusações e confundindo as figuras de acusador e juiz.

Mas é a condenação do inocente, no julgamento perante Pilatos, que diz não ver nenhum motivo para condenar Jesus, que nos mostra o mais claro exemplo das limitações e das falhas da justiça humana. Pilatos foi o juiz que, como Praefectus romano da Judeia, desconhecendo completamente o sábio exemplo de Salomão, “lavou as mãos”, para, assim, a pedido da turba (que optou pela absolvição do criminoso Barrabás), condenar Jesus a morrer crucificado.

Sem entrar, evidentemente, na discussão teológica acerca do livre-arbítrio de Pilatos (pois, em teologia, há quem defenda que a morte de Jesus obedece aos planos de Deus e que Pilatos estava predestinado a ordenar que Jesus morresse crucificado), historicamente falando, ele era o juiz que podia condenar ou absolver Jesus. Pilatos, em certo momento, teve a noção da verdade. Ele disse: “Que é a verdade? E, dizendo isto, tornou a ir ter com os judeus, e disse-lhes: Não acho nele crime algum”. Ele sabia quem eram os verdadeiros culpados: a multidão, todos nós, a humanidade, que queria condenar, naquele instante, o único Justo. Pilatos foi aquele juiz fraco ao ponto de não enfrentar as responsabilidade de uma sentença justa, preferindo ceder às investidas dos sacerdotes e da multidão cega, temendo talvez uma nova revolta em Jerusalém, o que ia de encontro aos interesses do seu Imperador romano. Indolente e cansado de escutar tanta hipocrisia acerca da verdade, ele preferiu “lavar as mãos”. E, mesmo sem o querer, mas também revolucionariamente (mesmo que revolução aqui tenha um sentido mais metafórico e pacífico), Pilatos acabou por definir o destino de grande parte da humanidade.

 Quantas vezes, na vida forense de hoje, não nos deparamos com certos Pilatos? Em momentos de desespero, quase chegamos a negar a própria ideia de Justiça e queremos gritar, como o fez o Filho em sua agonia: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.

Mas, uma vez que eu ainda quero acreditar que a “Justiça tarda, mas não falha”, serenamente (ou inocentemente?), para esses juízes, prefiro recomendar que se diga: “Pai, perdoai-vos. Eles não sabem o que fazem”.

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