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O colecionador das bolachas quentinhas

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Veludo Poty
Carlos Gurgel
– Poeta, produtor cultural [[email protected]]

Acontece que tudo passa. Semelhantes passam. Indisponíveis perfis, passam. Tudo passa. Como tudo que vai e vem. Entre os ponteiros do relógio apontados para os nossos corações por sobre a brisa do mar que pincela nossos pés e sonhos. Uma tempestade vem. Uma gigantesca frota se aproxima. Entre curvas, montanhas, becos, vielas, estradas, avenidas. Vindo, ela devasta tudo, tal a sua fúria e crueldade. Tal sua pontiaguda boca flamejante. Que derruba mentes, sementes. Dessas que vem e permanecem. Se sentindo com respiração própria, abrindo portas e quartos íntimos. Baioneta que dilacera pulmões e a singeleza de um olhar. A guerra, quando ela chega, vai escorrendo fogo, labaredas de um produto satânico e de uma infinita chacina. Com ela, perdemos casa, identidade, automóvel, sabonete e as chaves da porta do quintal. Assim, entre as primeiras horas do dia, tudo vai para o espaço desconhecido e diabolicamente democrático. Carimbando nossos vinténs e alqueires. Mata atlântica virgem que em segundos some do mapa. Mapa que papa o papo e a pompa de quem se pune. Tantos coldres e cowboys. Tinta vinda de uma espécie de guardanapo importado. Correio que dá ordens, e dizima o quarteirão onde a humanidade passa pela praça solitária e recheada de lágrimas.

Por aqui, nessa esteira, entre banquete de fogueiras, tapetes de canhões e infinidade de bordões e bordéis de guerra, surge um filósofo do início do samba, das modinhas passionais. O lorde de Petrópolis, bairro chique. O professor Gracio Barbalho. Detentor de uma discoteca, senão a maior, uma das maiores do Brasil. Possuidor de tantas e tantas relíquias. Anos, décadas e mais décadas de pesquisa e aquisição. Homem intelecto. Habituado a receber na sua residência, a fina flor da intelectualidade local e das outras regiões brasileiras. Pelo seu catálogo, elenco, a riqueza dos primeiros sambas, chorinhos, modinhas. De uma infinidade. Tresloucada melodia genial, crème de lá crème, do jazz. Foi lá, pela residência do professor Gracio, que o glamour da guerra perdeu a graça. Foi pelo alpendre de professor Gracio, que ele e os seus convivas, celebraram o início de um novo tempo. Recheado de balas, requentadas bolachas de sambas e de  jazz. Fruto de uma mente humanitária e sonora. Semente de tudo que permanece e fica. Árvore frondosa como uma perene lição dos seus LPs e resenhas das revistas especializadas.

O maestro, o propagador do que mais sublime se gravou. Um frescor entre tantos corpos jogados aos territórios terreiros, cantochão. Uma inesgotável e profunda sala de audição sem cadáveres. Uma sinfonia de tantos bandolins. De tantos detentores de cavacos. Rumores, suores senhores do fraseado tio Sam. Do bip bop que customiza amizades e corações em chamas. Labaredas de varietés e vespertinas colombinas. Um fraseado dos sopros anunciando a dominação imperialista. De tantas e infinitas perdas. Punhados de corpos suados. Pela guerra, pelas medonhas modinhas. Sambas a granel no meio do quartel. Tantas e todas e tontas, as traquinices de uma ginga. Dos quadros quadris quadriciclos retorcidos, remexidos, remixados de tantas dores, cores e flores.

Uma cidade amanhece. Por sobre suas praças, as praças dos outros. As placas avisando que a vida continua, tatuada de insígnias e gravações raras. Graças ao professor Gracio, exímio garimpador das músicas etéreas. Da ginga da mulata como genuíno exemplo de uma raça festiva, recheada de sensualidade e rincões. Rito da música, vida. E do renascimento de um coração que pulsa ao redor das suas gravações e gerações. Promulgando a febre que se alastra entre seus cordões e blocos. Intérpretes e intrépidos da multidão de anônimos que bailam como fortuna de uma memorável vitrola. Sêmen de tudo que gira e é feliz. Viva, a vida, do cordão do colecionador de sucessos. Tão esquecido. E eternamente no coração de todos que procuram pela brasilidade sem fronteiras. Apaziguando as bandeiras no batuque do jazz e explosivos coros. Que o professor cubra com sua sensibilidade todos nós. Vultos de uma contemporaneidade louca e despida de astros e estrelas.

Então, um para raio aparece, como um regador da brisa, brasa escondida. Plantada de querência e flama. Instala-se assim, uma brisa. Suave brasa, mora, nenhuma. Que aos poucos, mesmo quase nenhuma, vai encorpando um leve vento. Daqueles que a alma sopra e sussurra. E a cidade fortalecida, e reconhecendo seus rios e praças, evolui como uma emissora que propaga a modinha, seus pistons, contrabaixo, pandeiros, ganzás, baterias, sax, jazz e sambas. Tendo como seu criador, um exemplo a ser seguido, ouvido pelos seus quatro mil auto falantes da guerra pela paz, cruzada de riffs, ingredientes da cozinha sonora tropical. Assim, o professor descerra seus conhecimentos. Como batuta quente, recém chegada do front, entre Parnamirim Field e da esquadra do Tio Sam. Pois que a música no ar, entre pilotos, aeronaves e sertões, seja a saga sem fim. A dixieland torre de escuta e pombo correio de tantos corações apaixonados e varonis. De tanta e sortida sorte. De tantas e inesquecíveis batucadas nos ouvidos dos esquecidos foliões. Acima da fronteira onde a discórdia passou. Aos pés de um ritmo alucinatório e de paz. O barulho do professor Grácio Barbalho é baralho de um jogo rejuvenescedor e supimpa. Mestre das artes das audições que se eternizam no sopé da sua subida Petropolitana. Entre a fumaça dos carros e dos cigarros. Por sobre as coxas das marés que nos lavam e nos trazem. E como tesouro, a certeza de que o coração do professor sempre viverá entre todos que amam a liberdade da brasilidade despida de retoques e suspeitáveis refrões. Que a santa fuzarca do professor, nos elimine dos tóxicos gases e da carnificina apadrinhada de formigas e cruz. Por sobre o samba que renasce. Paz que perdura nos cordões da vida alegre. Sitio do sorriso do mestre. Colecionador das bolachas quentinhas. Pátria de tudo que seduz, não é bolha.

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