sexta-feira, 29 de março, 2024
26.1 C
Natal
sexta-feira, 29 de março, 2024

“O Estado tripudia e conduz o cidadão a ajuizar ações”

- Publicidade -

Sylvio Costa e Edson Sardinha
Do Congresso em Foco

Há 24 anos no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Marco Aurélio Mello nunca teve receio de ficar sozinho nos julgamentos. Não foram poucas as vezes em que suas posições foram derrotadas pela maioria da corte. Por causa disso, ganhou até o apelido de “ministro do voto vencido”, aquele que se opõe à posição da maioria. Nada que o abale. Aos 67 anos, não tem pressa. Faltando três anos para se aposentar, ele critica a postura de alguns colegas da corte.
Ministro Marco Aurélio Mello, do STF, critica a lei da Ficha Limpa e defende uma atuação mais rigorosa do Ministério Público eleitoral
Segundo Marco Aurélio, hoje os ministros do STF trocam votos entre si antes do início das sessões. “Os colegas agora resolveram, para ter uma votação em plenário praticamente simbólica, distribuir e trocar os votos”, afirmou ele, em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco. “Hoje um colega disse que não recebe. Eu também não recebo para proferi-lo”, continuou.

Ele critica o que chamou de tentativa de acerto prévio das decisões. “Não estamos em um teatro pra acertarmos previamente decisões, e depois colocarmos a capa para proclamar a decisão”, disparou Marco Aurélio. “Aqui vinga a publicidade”, disse.
O ministro diz que a população não concorda com o novo julgamento do mensalão, que reduziu a pena dos condenados e permitiu que eles trabalhem durante o dia e volte para o presídio à noite. “Quando viajo, nos aeroportos, os cidadãos comuns vêm até a mim pra dizer: mas como? Estão revendo tudo? Erraram anteriormente?”, explicou Marco Aurélio.

De acordo com o ministro, ele nunca aceitou o uso de “figurinhas” em toda sua carreira. “Estou há 35 anos na magistratura e nunca troquei figurinhas, e não vou trocar. Não há quem me faça repassar um voto antes da sessão, do pregão do processo.”
Dias atrás, um ministro lhe entregou um voto para que Marco Aurélio lesse. “Chegou um voto aqui – não vou dizer emitido por quem –, devolvi, não tomei conhecimento.”

Marco Aurélio critica o alcance da Lei da Ficha Limpa, que impede políticos condenados por crimes graves e por mais de um juiz de participarem das eleições. Na opinião do ministro, houve “exageros” na aplicação da regra, os eleitores são culpados pelos maus políticos que existem e é preciso cautela no julgamento de acusações criminais contra parlamentares para não haver “justiçamentos”.

O ministro critica também que os jovens que protestaram em junho do ano passado contra a corrupção e por melhores condições de educação, saúde e transporte. “Em vez de se ter o protesto na rua queimando lixeiras, depredando prédios públicos, prédios privados, que se tenha um protesto nas urnas. Ao invés do ‘Vem pra rua’, diga: ‘Vem pra urna’”

Quais são os maiores problemas, no campo eleitoral, para que as eleições permitam a sociedade brasileira ter uma representação digna?
Nós temos uma legislação, a meu ver, suficiente. Principalmente considerando-se a Lei Complementar 135, que é a Lei das Inelegibilidades. Mas acontece que o ator principal das eleições ainda não se conscientizou sobre a importância do voto. A sociedade não é vítima. É autora, considerados os maus políticos que temos. Foi ela que os colocou nos cargos. É hora de o eleitor perceber a importância do voto, perceber que, embora uno, ele se soma a tantos outros, implica a escolha do representante que praticará atos que repercutirão na sua vida. Então, que ele faça uma triagem. Para isso, tem o horário de propaganda eleitoral.

O tempo para as propagandas eleitorais no Brasil não é muito curto?

Está na hora de rever, porque quando a lei é muito limitativa, ela deixa de ser observada. O horário da propaganda partidária hoje serve para alavancar pré-candidaturas. Em vez de se ressaltarem o projeto, a concepção e a ideologia do partido, ressalta-se o perfil deste ou daquele correligionário, que sabidamente é pré-candidato. E acontece algo que se torna um ciclo vicioso. Como todos os partidos deixam de observar a regra, nenhum deles representa contra o outro. Todos colocam as barbas de molho. E o Ministério Público Eleitoral, às vezes, não atua. Deveria atuar. O desvirtuamento da propaganda partidária e a não observância da Lei 9096/95 (Lei dos Partidos Políticos) são flagrantes e escancarados. Nada acontece. Ainda temos uma jurisprudência, para mim perniciosa, que somente se pode considerar uma investigação judicial eleitoral para efeito de cassação de registro, para efeito de cassação da diplomação ou para efeito de cassação do mandato, o período posterior à data limite para o registro. Ou seja, o período em que já se tem formalmente o candidato. Como se apagasse esse período imediatamente anterior, que serve muitas vezes para azeitar a candidatura.

O senhor defende o fim da obrigatoriedade do voto?

Sou favorável ao voto facultativo, sou favorável ao financiamento estritamente público de campanha, e não misto público e privado. Digo que o financiamento privado sai muito caro, muito caro mesmo, para a sociedade. Quando uma empresa financia uma candidatura, ele geralmente adota a prática própria do jogo do bicho, cerca por todos os lados e, posteriormente, vai querer o troco. Esse troco é péssimo em termos da independência que se almeja, considerada a atuação do parlamentar, do chefe do Executivo municipal, estadual ou mesmo federal. Acaba havendo um atrelamento nefasto para a sociedade.

Em relação à Ficha Limpa, não tem faltado do poder público um pouco mais de energia para fazer valer algo que foi tão bem recebido pela população?

Não. Tem havido até exageros. Fui vencido aqui e não se observa sequer a jurisprudência do Supremo, adotando aí uma postura de uma rebelião democrática e republicana no TSE. Pensa-se em consertar o Brasil, com ‘c’ e com ‘s’, não de forma prospectiva, mas considerando o passado. Ou seja, toda lei é editada para apanhar atos e fatos futuros. A lei visa à segurança jurídica, saber o que pode acontecer ou não na vida gregária. Passaram a aplicar a Lei da Ficha Limpa a atos e fatos passados, inclusive não observando decisões da própria Justiça Eleitoral. Tivemos casos no TSE em que, com o título judicial declarando uma inelegibilidade, segundo a legislação da época da prática, à margem da lei, por três anos. De repente se diz, não, agora não são mais três anos, mas oito anos. Com isso, acaba-se desacreditando a própria lei.

Desde quando o senhor chegou ao Supremo, nos anos 1990 pra cá, o que mudou no pensamento do Supremo?

Hoje tenho que reconhecer que o colegiado está mais aberto a discutir certas matérias. E isso, às vezes, leva a um limite. É preciso que se observe a autocontenção. Nós não podemos adentrar campo reservado a outro poder. Agora mesmo, um colega na sessão sobre precatórios defendeu uma posição que implicaria o tribunal atuar como legislador positivo. Não somos deputados nem senadores, não podemos legislar. Precisamos respeitar a separação de poderes, os espaços reservados constitucionalmente a cada qual dos poderes.

O Supremo tem dado passo além de suas competências?
Ah, tem. Hoje mesmo disse no plenário. Só não lancei algo com picardia, que não sabia se encarava o colega como deputado ou senador, pra não gerar maior incompatibilidade. Nós declaramos, contra o meu voto, que apenas purificava a emenda constitucional 62. Mas o tribunal resolveu declarar inconstitucional e discute a eficácia da decisão. Ele partiu para o campo da normatização, prevendo a utilização de depósitos judiciais, em verdadeiro empréstimo compulsório, mediante decisão judicial, pelo Estado, para satisfazer o que precisa ser satisfeito via orçamento. Que o legislador o faça, nós não podemos fazer.

Os ministros do Supremo estão mais vaidosos?
Não, não sei o que ocorreu e vem ocorrendo. Talvez o que eu possa dizer é que, com uma modificação tão substancial, a prática anterior foi alijada.

Que prática?

A prática anterior, que era simplesmente quando se concordava com o relator, acompanhava-se o relator, sem tecer considerações. Houve uma vez até que, não sei foi o ministro Eliomar Baleeiro, que pediu a um ministro que se estendia muito. Depois vossa excelência junta o processo, que peço ao Bilac para juntar à editora Forense. Essa conciliação, reconheço, é difícil, complicada. Meu voto geralmente tem duas ou três folhas. Quando não sou relator, voto de improviso. Quero estar muito espontâneo. Meu receio seja de ser convencido pelo voto do relator. Por isso, não aceito voto. Voto na hora e formulo meu convencimento.

Qual foi o voto mais difícil ou o mais trabalhoso que o senhor já deu?

Mais difícil nenhum, porque todos foram dados segundo a minha ciência e consciência. Os mais trabalhosos foram o monopólio de petróleo, que eu conclui que haveria um monopólio, mas a maioria disse que não havia. Voto sobre inexistência quanto ao postado, da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. A turma disse haver um monopólio da ECT. Raposa Serra do Sol foi um voto um pouco mais longo. Anencefalia, interrupção da gravidez, fiz inclusive audiência pública. Por último, votei contra a proibição da utilização do amianto. Disse que não nos cabe proibir a comercialização, mas ao Congresso Nacional. Foram os votos mais trabalhosos.

Mensalão não esteve entre os mais difíceis?
O mensalão foi um julgamento que cansou a todos, inclusive a sociedade brasileira e que, a meu ver, deveria ter acabado com o primeiro pronunciamento da corte. Mas houve um voto de empate admitindo esse segundo tempo.

No julgamento do mensalão o STF frustrou a sociedade?
Sem dúvida alguma. Quando viajo, nos aeroportos, os cidadãos comuns vêm até a mim pra dizer: mas como? Estão revendo tudo? Erraram anteriormente? E contra essa decisão, caberá um outro recurso? Não se tem um recurso, mas se tem ação de impugnação autônoma, que é a revisão criminal. Só que na revisão criminal, o colegiado atua em uma via muito estreita. A procedência pressupõe uma decisão contrária à prova dos autos, a nulidade de uma prova que serviu à decisão.

Muitos brasileiros olham para o Legislativo com uma imagem negativa. No Executivo, existe certa desconfiança. Então me parece que, em momentos do julgamento do mensalão, muitos olharam para o Judiciário com uma esperança de que é aí estava a última trincheira, que aí seria possível virar o jogo…
Não tenho a menor dúvida. Não se pode fazer Justiça pelas próprias mãos. Isso é crime, está lá no artigo 345, do Código Penal. Recorre-se ao Judiciário para apresentar uma solução. E essa solução é apresentada atuando, o Judiciário como juiz de forma coercitiva. A vontade das partes é substituída pelo Judiciário. Que ele atue a tempo e modo. Até porque justiça que tarda não é justiça, é injustiça manifesta, como dizia Ruy Barbosa. Hoje, pedagogicamente, nós temos no rol das garantias constitucionais que o cidadão deve ter o processo solucionado em um prazo razoável.

Esses sentimentos de esperança em relação à Justiça estão exagerados ou acima da capacidade que o Judiciário tem para responder?
Muitos, principalmente o Estado, apostam na morosidade da Justiça. E, em vez de solucionar, por exemplo, na mesa de negociações a pendência, deixa o cidadão entrar no Judiciário. Não é acreditável sequer que tenhamos tramitando no STJ cerca de 70% dos processos movidos contra o Estado. O Estado às vezes tripudia e acaba conduzindo o cidadão a ajuizar uma ação. Isto é, o Estado, a União, os municípios, as autarquias, as empresas públicas e as fundações públicas. É assim o Executivo em geral.

Uma decisão muito comentada do senhor foi sobre o supersalários, que são os vencimentos acima do teto.
Volto à tecla. Paga-se um preço módico para viver em uma democracia. Principalmente o respeito à leis das leis. Ninguém defende mais a prevalência do teto, muito embora eu entenda que ele hoje está achatado porque não há sequer uma reposição do poder aquisitivo da moeda. Nós continuamos prestando os mesmos serviços e ganhando menos do que ganhávamos anteriormente. O que ganhamos hoje não compra o que comprávamos antes.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas