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O jato perfumado e irreverente dos Antigos carnavais

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Cinthia Lopes
Editora

O Rio de Janeiro ainda era capital do Império quando a provinciana cidade de Assu, distante 214 km de Natal, dava o seu grito de liberdade com o debut da ‘Sociedade Carnavalesca Assuense’ e a realização dos primeiros bailes de mascarados. A data era 13 de fevereiro de 1875 e a cidade dos poetas já estava contagiada pelo mantra de uma festa popular e irreverente, contrariando uma parcela conservadora da sociedade, que considerava a novidade “um brinquedo de funestas consequências para a humanidade”. Embora a folia já existisse em outras localidades, inclusive em Natal, do ponto de vista documental e das notícias nos jornais da época, não havia quase registro. Com boa vontade, uma nota reclamona de canto de página.  A exceção veio através do jornalista João Carlos Wanderley, o primeiro a registrar a palavra “Carnaval” no seu periódico Correio do Assu, no final do século XIX. Afinal, escreveu o redator, a “mocidade levava jeito para a coisa”.
Pesquisador Gutemberg Costa apresenta ao leitor a primeira de uma trilogia, que conta a história de mais de 100 anos de carnaval
O jornal provavelmente virou pó no frágil acervo do Instituto Histórico e Geográfico, mas a notícia não só serviu de marco inicial do nascimento do entrudo potiguar, como o seu registro está a salvo no livro “Antigos Carnavais da Cidade”, de autoria do escritor e pesquisador Gutemberg Costa.

Após trinta anos de pesquisas, a obra chega ao público nesta quinta-feira (13), com sessão deautógrafos às 18h, na Funcarte. O livro será comercializado no lançamento por R$ 50,00. A edição tem a chancela da 8 Editora e contou com recursos do Fundo Muncipal de Cultura – FIC, via Funcarte. Nas páginas introdutórias, uma bonita apresentação do pesquisador Cláudio Galvão, além de comentários de Claudionor Barbalho e de Anchieta Fernandes. O projeto gráfico é de Marcelo Sena.

De forma cronológica, Gutemberg Costa apresenta ao leitor o primeiro livro da trilogia, que conta mais de um século de carnaval, desde o período imperial, passado pela República até 1945, com o fim da Segunda Guerra.
O lançamento é nesta quinta, na Funcarte
Ao todo, são 300 páginas que registram a evolução e a memória cultural dos carnavais locais em fatos, fotos, personagens e curiosidades. Apesar de balizada pela notinha do jornal assuense, a pesquisa se concentra em Natal.  “Escolhi 1875 como base para iniciar a pesquisa por que foi o mais longe que consegui identificar  sobre o festejo. Eram tempos do entrudo, dos mascarados, do mela-mela comum das primeiras festas”, conta o autor.

Popular, irreverente e suja
O noticiário registrou as primeiras manifestações carnavalescas como sociedades recreativas que saíam às ruas numa bagunça regada a muita água e farinha de amido. O famigerado mela-mela muitas vezes causava repulsa dos senhores distintos e furor das autoridades. Vez por outra alguém ia preso por algazarra.

Blocos e agremiações eram assim no começo. Não havia ainda uma música específica e as pessoas dançavam no ritmo das polcas, ranchos, maxixese chulas. As primeiras brincadeiras de mela-mela aconteciam nas proximidades da Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, no Centro, na época chamada de rua Grande. Depois o carnaval vai, nos anos 1910, para a rua da Palha, atual Vigário Bartolomeu, incorporando marchinhas e frevos. Havia batalhas de confetes, gritaria e os batuques.
Das raras aparições de Maria Boa, na descontração carnavalesca e lança-perfume
O livro acompanha as atransformações década a década, quando foram incorporadas  mais agremiações, as primeiras tribos de índio e o festejo  transferiu-se para a Ribeira, na av. Tavares de Lira. Alí ficou entre os anos 20 e  1930, décadas consideradas de “ouro” para a folia com seus grandes bailes, blocos de rua e aditivos como a lança-perfume, usados a princípio de forma inocente. A trilha sonora, adereços e indumentárias chegavam de navio, via Vapor Brasil, vindo de Recife ou Rio de Janeiro. A elite, antes alheia, passou aos pouco a integrar-se à festa aproveitando o surgimento dos bailes como o Natal Club, Teatro Carlos Gomes, Grande Hotel e Aero Clube. Entre Pierrôs, colombinas, russas, carmens, marinheiros, baianas e homens vestidos de mulher, o carnaval se tornava a festa mais libertária da cidade.

Nos anos 1940 o desfile subiu para a av Rio Branco, na Cidade Alta, palco do corsos e a presença de jovens, famílias e crianças que desfilavam em cima dos automóveis.  A obra registra a primeira decoração futurista ambientada pelo artista Eramo Xavier no baile de 1929, no Aero Clube; os primeiros fotógrafos que cobriram o carnaval e os jornais alternativos, pois na época ainda era discriminado.

Acontecimentos políticos também desaguavam no carnaval. Rixas motivavam brigas homéricas e até tiroteios, como ocorreu no carnaval de 1935, causando a com morte de uma pessoa na av Tavares de Lira. Fora os arroubos do poder, o carnaval transcorria em paz, amor e alegria.

Acervo
Para construir essa memória sociocultural, Gutemberg  empreendeu uma incansável rotina nos arquivos do Instituto Histórico, onde encontrou os primeiros jornalistas que abordaram o tema, como Elias Souto e Pedro Avelino. Também a Tribuna do Norte, Diário de Natal e jornal a República, em sebos e bibliotecas particulares, em busca de material sobre os antigos carnavais. Trocou  informações com intelectuais e pesquisadores de outras cidades e até outros países, o que lhe garantiu informações inéditas, nunca antes registradas em livro – ao menos dos historiadores locais – de reportagens sobre o carnaval local publicadas nos jornais norte-americanos. “Um amigo em Nova York localizou os jornais e me enviou. Publiquei cópias das manchetes originais e traduzi os textos, está tudo no livro”, conta.
Raimundo Amaral e seu habitual traje de Carmen Miranda
A pesquisa também tomou um considerável investimento financeiro do autor, com aquisição de livros, acervos e fotografias, viagens e discos de vinil.  “Nem sei quando gastei. Sou apaixonado por carnaval e chego a viver emocionalmente as histórias pesquisadas. Adquiri tudo o que pude. Tenho hoje mais de 500 vinis só de trilhas carnavalescas, fotografias que foram cedidas outras que comprei. Passei muito tempo com essa pesquisa à espera de incentivo financeiro e havia uma cobrança dos amigos e de outros autores que escreveram sobre carnavais do Rio, Pernambuco e Bahia. Faltava suprir essa lacuna”, confessa. O autor já tem prontas as duas outras partes da história – de 1946 a 1976 e de 1977 até os dias atuais. “Quero que o livro chegue as pessoas, as bibliotecas e escolas”. Gutemberg havia pensado numa grande exposição antes do carnaval, mas precisa de orçamento para realizá-la.

Figuras pitorescas
O mais interessante de “Antigos Carnavais da Cidade” é o fato de evocar um passado irreverente do povo nas ruas. Quem não brincou, ficou de fora do livro. Há uma fartura de personagens e uma iconografia cheia de detalhes.  Algumas histórias vale registrar, como a do poeta Manoel Virgílio Ferreira Itajubá, por exemplo, que certa vez tomou a iniciativa de fazer um carnaval de arromba: “trajou-se à romana, arranjou uma porta de casa colocou-a nos ombros de quatro mascarados e  deitou-se vestido num camisolão branco”. Ou, quando o Dr Bacorinha, de fraque e cartola, bebia guaraná num penico e comia uma salsicha espetada no garfo. Até a figura icônica do folião Raimundo Amaral, funcionário dos Correios que todos os anos se travestia de  Carmen Miranda chegado a ser “mais bonito que a própria”, segundo dizia o pesquisador Lenine Pinto. Entre as raras imagens, está uma foto da comerciante Maria Boa com uma lança-perfume da marca Rodouro metálica em mãos.

Carnaval para gringo ver
“Vamos brincar o carnaval como os natalenses estão brincando”, dizia a chamada do “Foreign Ferry News”, jornal publicado em Parnamirim Field, ativo entre 1943 e 1945. A publicação, editada pelos americanos, era impressa nas oficinas do jornal A República e trazia ano a ano registros regulares dos bailes realizados nos clubes USO e nas ruas da capital.
O jornal “Foreign Ferry News” era impresso nas oficinas do jornal A República e trazia registros regulares dos bailes realizados na capital
“A maioria dos rapazes teve a chance de ver brasileiros celebrar do seu próprio modo. As danças de rua eram os principais assuntos do clube, com os membros vestindo-se como garotas e também com várias outras fantasias. O perfume foi a principal atração do carnaval…”, dizia uma das reportagens.

 Sobre a presença dos visitantes na folia natalense, tem até uma história curiosa sobre o carnaval da vitória, em 1945. Neste ano, a festa ocorreu na av Rio Branco, lotada de potiguares e estrangeiros nunca mistura de comemorações. Na Quarta-feira de Cinzas, eis que chega um soldado no Grande Ponto atrás de festa. Não vendo ninguém e já “triscado”, virou-se para um transeunte e perguntou: ‘Ei amigo, por que não mais Cecília?’ O nome não era de nenhum afair de carnaval, mas de um dos hits daquele ano, a marchinha de autoria de Roberto Martins e Mário Rossi. “Pra mostrar que braço é braço/ Eu Conquistei Cecília/ Enfrentei balas de aço/ Mas conquistei Cecília/ Ai Ai, Cecília…

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