quinta-feira, 28 de março, 2024
30.1 C
Natal
quinta-feira, 28 de março, 2024

O vadeio de Mestre Duca

- Publicidade -

Carmen vasconcelos [Poetisa ]

Papai me deu outro dia a letra de uma música que foi feita na cidade de Angicos num tempo em que nem ele era nascido. Para esclarecer, meu pai e eu nascemos lá, e a música também, ela muito antes de nós. A música conta a história de um baile de casamento que acabou em confusão e aconteceu na “Goela da Ema”, que é um lugar  em Angicos onde duas ruas se encontram formando uma goela. “O vadeio de mestre Duca” era o nome da música e vadeio tinha o significado de baile. Curioso é que esse significado se perdeu no tempo. Os meus dicionários não registram e a internet diz que vadeio (o verbo vadear) é: atravessar com esforço, chapinhar. Ou atravessar o rio a vau. Atravessar o rio andando. E existe pesca de vadeio também. Nada disso tem a ver com baile, festa.

Mas a internet me deu também uma música de Luís Gonzaga que se aproxima, e muito, do significado posto na música de Angicos. Assim começa “Derramaro o Gai”: “Eu nesse côco num vadeio mais/apagaro o candeeiro e derramaro o gai…”, música que também fala de um chafurdo numa festa. Gonzaga usa o termo vadeio como conjugação do verbo vadear, sinônimo de dançar, enquanto em Angicos vadeio era o substantivo. Interessante é que na música de Gonzaga a confusão envolve noiva, noivo, pai da noiva…

Bem, o que conta a lenda angicana é que houve muitos desses vadeios na goela da ema, no tempo do ronca (alguém sabe quem é o ronca?). No vadeio imortalizado na música, todo o mundo foi, inclusive a gente pobre daquela vila (vejam como faz tempo, Angicos era vila e hoje tem até universidade), e tudo corria às mil maravilhas, quando, não se sabe porque, alguém puxou uma lambedeira (eu também não sabia o que era lambedeira, mas isso os aurélios registram, é uma espécie de faca-peixeira). Aí, começou o dissabor. Foi pancada para todo o lado, homens tidos e havidos como os fortões da cidade desataram a correr em covardia. Os mais enxeridos “foram ficar escondidos nas pernas do tocador”. E as mulheres fizeram carreira para o mato, em plena madrugada.

“O vadeio de mestre Duca” lista nomes de muita gente antiga da cidade, os quais desconheço, inclusive o tal Duca, de quem não sei história. Papai também pouco sabe sobre os personagens da música. Este o nosso destino: acabar-se quando se vão acabando aqueles para quem existimos. Um poema de Montale fala disso. E ora, chega-me uma lembrança de sincronicidade: esse poema de Montale fala de um músico, cujas músicas se perderam em uma inundação e cuja pessoa só existia para a irmã, até ela também morrer.

Acabamos, é o nosso destino. Mas, às valas comuns do esquecimento, prefiro a imaginação. Penso em cada um desses nomes como janotas vestidos para o baile. Penso nos seus passos no vadeio, mulheres pela mão. Penso em noivo e noiva na festa. Penso no noivo (a música diz) prometendo que, nem se casar cem vezes, inventa outro vadeio. Uma vila de mortos dançantes e candeeiros se sobrepõe por instantes à imagem da Angicos de hoje, cheia de luzes, motos e carros com sons ensurdecedores.      

Eu talvez seja rio que esses homens e mulheres ainda vadeiam. Mas sei que “O vadeio” existe para além destas minhas águas. Existe para o meu pai, que me contou sobre ele. Existe para alguns angicanos que lhe conhecem a história. Existe em uma memória coletiva, que fez acontecer um côco qualquer, onde Gonzaga não vadeia mais.

- Publicidade -
Últimas Notícias
- Publicidade -
Notícias Relacionadas