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“O Violoncelo” e sua trama imperturbável

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Nelson Patriota – escritor

Decalque da vida, quanto mais intenso for o conflito do homem com as circunstâncias que o cercam, melhor se resolve o romance. Em outras palavras, quanto mais humanos os seus personagens, ou seja, falíveis e contraditórios, mais possibilidades contém de refletir as vicissitudes próprias à vida humana. Assim, personagens perfeitos produzem enredos monótonos, resultando em romances previsíveis e insípidos. Lembremos o quanto de imprevisto subjaz no comportamento do astuto Ulisses nos dois livros atribuídos a Homero: o estratagema do cavalo para romper as muralhas inexpugnáveis de Troia corresponde ao ardil de nomear-se ninguém ao ciclope Polifemo, levando-o ao desespero e à morte. Nem seria de outra natureza a glória de Hamlet e seu interminável solilóquio irresoluto entre ser e não ser.

As tramas que a vida tece com mais sutileza, até, do que a fidelíssima Penélope, abomina a previsibilidade, como a profusão de romances vem constatando, desde o relato sobre o temerário cavaleiro andante que Cervantes capturou nas estradas poeirentas da Mancha. A glória de Capitu é feita dessa mesma matéria de ditos e não ditos, olhares e negaceios.

Segundo esses critérios, o livro “O Violoncelo” (Livre Expressão, 2012), do norte-rio-grandense Francisco Antonio Oliveira, foge aos parâmetros do romance clássico, na medida em que tem uma trama perfeitamente linear, o que não deixa lugar para o elemento surpresa que costuma subverter o curso das narrativas de ficção. De fato, nenhum imprevisto, nenhum acaso, se interpõe no caminho do quarteto formado por Gary e Beth, de um lado, e Marcos e Susana, de outro, na caça ao segredo de um velho violoncelo encontrado num sebo em João Pessoa. Resulta daí que o apelo do livro se restringe à evolução natural de uma investigação que, desdobrando-se em muitas frentes, termina por esclarecer todo o mistério que envolve o instrumento.

Paralelamente, essa busca enseja incursões às vezes demoradas pelas páginas da história da arte, notadamente nos itens relacionados com a música erudita, a arte dos “luthiers”, sobretudo os Stradivari e os Guarneri. A pintura renascentista, pela importância que desempenha na trama, merece um tratamento à parte, do mesmo modo que a ópera. 

Mais intrigante de tudo é que nada, absolutamente nada, vem perturbar a longa investigação levada a cabo pelo quarteto referido ao longo das 264 páginas do livro. Não faltam meios nem disposição para o projeto em pauta, cuja finalidade se esgota em desvendar um segredo, a exemplo de um latinista frente e a inscrição intrigante.

À altura da página 185, o autor chega a sugerir que a intuição de Susana acendeu a luz amarela, após um encontro que ela e Marcos tiveram com certa professora Francesca (uma vilã em potencial?), após esta examinar a fotografia de uma tela que viria a ser confirmada como de um discípulo do mestre veneziano Canaletto. Mas a desconfiança de Susana resulta inócua, como sugerindo que o autor recuou essa linha narrativa. Não surpreende, então, que Marcos seja quem leva a melhor, no final, ao subestimar a intuição da mulher, embora credite a ela os principais progressos obtidos na investigação.

Outra leitura de “O Violoncelo” o coloca como uma metáfora rica e indistinta, haja vista que a busca pelo segredo do instrumento serve de rito de transição da juventude para a maturidade dos personagens envolvidos, abrindo-lhes as portas para o crescimento profissional e a realização afetiva. No final, revelados todos os segredos embutidos no agora restaurado e supervalorizado violoncelo, seus pesquisadores construíram uma história comum, cuja continuidade, porém, ficará a cargo de o autor querer desenvolvê-la ou não. Nesse último caso, restará a cada leitor imaginá-la. Torcemos que dessa vez o elemento surpresa, encarnado no teatro clássico por um “Deus ex machina”, devolva à trama nuances e tons fortes, conferindo-lhe, ao final, os traços e contrastes que matizam a vida.

Destaque   

“ ‘O Violoncelo’ […] foge aos parâmetros do romance clássico, na medida em que tem uma trama perfeitamente linear, o que não deixa lugar para o elemento surpresa que costuma subverter o curso das narrativas de ficção”.

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