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Precedentes: o outro lado (II)

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Marcelo Alves Dias de Souza

Procurador Regional da República

Como eu disse aqui na semana passada, na primeira parte da nossa conversa sobre o tema “Precedentes: o outro lado”, a literatura jurídica aponta várias desvantagens na adoção da teoria do “stare decisis” (ou dos precedentes judiciais obrigatórios). Já conversamos sobre as alegadas “rigidez” e “complexidade” dos sistemas fundados em precedentes vinculantes. Chegou a hora de tratarmos de outras desvantagens apontadas: a morosidade no aperfeiçoamento do direito, a ocorrência de muitas distinções ilógicas nos sistemas baseados em precedentes vinculantes e a suposta ofensa ao princípio da separação de poderes.

Comecemos pela apontada “morosidade no aperfeiçoamento do direito” nos sistemas jurídicos fundados em precedentes vinculantes, desvantagem essa que estaria associada a já comentada “rigidez” desses sistemas. De fato, há quem diga que a rigidez da doutrina faz como que o desenvolvimento do sistema jurídico do país seja lento, tomado o termo desenvolvimento como alteração da regra jurídica para atualizá-la com as mudanças de valores, com o progresso da ciência etc. Diz-se que, por exemplo, na Inglaterra, além de demorar bastante para que uma decisão chegue à sua Suprema Corte (do Reino Unido), a doutrina do “stare decisis”, por seus próprios termos, exige a obediência às decisões passadas, o que, os juízes, sobretudo os mais conservadores, tendem a seguir à risca. Não resta dúvida de que, sob condições sociais em alteração ou em áreas do Direito para as quais a legislação não tenha sido atualizada, atribuir valor sagrado ao precedente seria um formalismo exagerado e uma ofensa ao que se costumou chamar de “equidade” material.

Mas aqui deve ser feita uma observação. Um sistema jurídico baseado na lei em sentido estrito também pode ser estático. Aliás, por esse simples fato, tende a ser mais estático, porque os câmbios de jurisprudência são bem mais comuns (pelo menos, normalmente, devem ser) que as alterações na lei. Esse é um fato que reconhecem Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão (em seus “Comentários ao Código de Processo Civil”, publicado pela RT): “Indubitavelmente a jurisprudência tem se antecipado às legislações na solução dos conflitos de interesses. Não poderia ser de outra forma porque a legislação é mais estática do que o juiz. (…) Não foi sem razão a perspicaz nota de Seabra Fagundes sobre a posição do juiz brasileiro na aplicação do Direito, concorrendo para o aprimoramento do Direito como condição de paz e de justiça entre os homens. Aplicando a lei, adequando-a à utilidade social e ao bem-estar do indivíduo”.

Um outro problema apontado em sistemas fundados em precedentes vinculantes está relacionado ao uso indiscriminado da distinção (“distinguishing”), talvez a mais comum das técnicas utilizadas para a não aplicação de um precedente que, em princípio, seria de seguimento obrigatório. Em linhas gerais, diz-se que, se os fatos fundamentais de um precedente, analisados no apropriado nível de generalidade, não coincidem com os fatos fundamentais do caso posterior em julgamento, os casos devem ser considerados, pelo tribunal ou juiz do caso posterior, como distintos. Consequentemente, o precedente não será seguido.

O problema é que o uso exagerado do poder de distinguir pode levar a que certas questões do direito se tornem complexas demais. Isso porque as diferenças entre certos casos se tornam muito sutis, e as decisões tomadas parecem, de certo modo, ilógicas. Essas “distinções ilógicas” (“illogical distinctions”) são episódios raros, mas é uma verdade que não pode ser escondida.

Além das objeções “práticas” à doutrina do “stare decisis” comentadas acima, faz-se também objeções “principiológicas”. Uma delas é a suposta ofensa ao princípio da separação de poderes. Como sabemos, a Revolução Francesa, a partir da desconfiança nos juízes do Antigo Regime, consagrou uma concepção rígida de separação de poderes pela qual o poder legislar deveria ser era exercido através dos representantes do povo soberano, nomeado frequentemente de Parlamento, cabendo aos juízes apenas a aplicação passiva da lei. Nos termos dessa concepção, a doutrina do “stare decisis”, sobretudo quando se concebe o precedente judicial como criador de Direito, implicaria ofensa ao princípio da separação dos poderes.

Todavia, de um tempo para cá, como explica Mauro Cappelletti (em “Constitucionalismo moderno e o papel do Poder Judiciário na sociedade contemporânea”, artigo publicado na Revista de Processo), temos presenciado o desenvolver de uma nova concepção do princípio da separação dos poderes. É uma “nova revolução”, um novo constitucionalismo, que abandona a ideia da rígida “séparation des pouvoirs” e consagra a ideia de uma “sharing of powers”. Cândido Rangel Dinamarco (na obra “Fundamentos do processo civil moderno”, publicada pela Malheiros) também vislumbra o desenvolvimento de uma nova concepção da separação de poderes, com uma abertura do sistema de tutela jurisdicional no sentido da transmigração do individual para o coletivo (pequenas causas, ação direta, ação civil pública, mandado de segurança coletivo etc.). Segundo Dinamarco, “essa nova postura constitui estrada aberta para a superação daquele rígido esquema lógico de índole estritamente dedutiva, que tendia a reservar ao legislador o trato abstrato e genérico dos direitos e a confinar o juiz no âmbito dos negócios concretos, específicos e individuais”. Na verdade, no nosso constitucionalismo, os exemplos de exercício, por um dos Poderes do Estado, de função típica de outro, são bastante conhecidos. O próprio controle de constitucionalidade concentrado e em tese, por exemplo, ao qual ninguém se opõe, representa, muitas vezes, uma atividade legislativa negativa, para usar a expressão do grande Hans Kelsen.

Por fim, ainda teríamos a objeção à doutrina do “stare decisis” fundada na ofensa ao princípio da persuasão racional do juiz. Mas sobre isso, por falta de espaço, conversaremos na semana que vem.

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