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Preconceito que atravessa séculos

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Ellen Rodrigues Repórter

O avanço tecnológico permite que hoje, em 12 semanas ou menos de gestação, se identifique detalhes da saúde do feto com a minúcia de um procedimento cirúrgico. Isso inclui reconhecer a presença de anomalias congênitas, como a anencefalia, malformação no tubo neural que inviabiliza, segundo a literatura médica, a sobrevivência do bebê. Mesmo nesses casos, o aborto depende de autorização da Justiça, o que mostra que nenhum avanço científico ou tecnológico conseguiu ainda dirimir todas as polêmicas em torno da vida.

Um dos motivos, talvez, seja porque a moral e a religiosidade que envolvem o assunto transpõem as respostas que o avanço do conhecimento nessas áreas possa abarcar, e influenciam diretamente o ordenamento jurídico. Com a experiência de quem julgou um dos primeiros casos de feto anencéfalo no Rio Grande do Norte, ainda em 2004, e muitos outros posteriores, o juiz Ivanaldo Bezerra, da 8ª Vara Criminal do Estado, diz que a carga de preconceito atravessou séculos.

A origem está ainda no livro Quinto das Ordenações Filipinas, que teve aplicação no Brasil entre 1603 e 1830. Desde essa época há confusão entre crime e pecado. Porém, na opinião do magistrado, uma vez adotado o Estado laico na Constituição Federal, separou-se Igreja de Estado, e não faz sentido manter criminalizadas certas condutas que tenham por puro fundamento a índole moral.

“O aborto é um tema a ser discutido.  Temos que verificar os novos paradigmas, discutir sem paixões, influências religiosas, políticas e ideológicas que às vezes conduzem não pelo  caminho mais razoável”, diz. A prática do aborto é crime, com apenas duas exceções, previstas no artigo 128 do Código Penal Brasileiro: em caso de estupro, o chamado “aborto humanitário”, e quando a gravidez põe em risco a vida da gestante, o “aborto necessário”.

Nessas ocasiões, não é necessário haver interferência da justiça. Para Ivanaldo Bezerra, o direito no País caminha em discussões importantes no Congresso Nacional, mas enquanto não há um avanço positivado na lei, cada caso precisa ser bem analisado antes da decisão. “Sempre estudei, examinei o tema. No primeiro caso de anencefalia que recebi ainda era um tipo de decisão nova, sem repercussão na jurisprudência (reiteração de decisões)”, diz.

O artigo “A anencefalia e o crime do aborto: atipicidade por ausência de lesividade”, do defensor público potiguar Manuel Sabino suscitou o polêmico assuntou e ocasionou uma série de ameaças de cunho religioso em seu e-mail pessoal. A pesquisa mostra também, em números, o cenário nacional nas decisões o assunto.

Dos 263 casos levantados, o Ministério Público concedeu   alvará a nada menos que 76%, ou seja, 201 deles. Em contrapartida, entre os 250 casos estudados por decisão de juiz, 95% foram deferidos, enquanto a apenas 13 foi negada a interrupção da gravidez.  A publicação foi atualizada e está prestes a ser publicada.

O juiz Ivanaldo Bezerra explica que em todos os casos que recebeu sobre anencefalia  fez questão de ouvir os pais do bebê, e o drama e a angústia estavam sempre presentes. 

“Imagine em uma comunidade pequena, no interior do RN, em que qualquer situação anormal causa comoção, saberem de uma moradora carrega no ventre um ser deformado. Faz sentido a jovem carregar o bebê nove meses sabendo que ele é inviável?”,  critica.

Para Ivanaldo Bezerra, “a legislação permite aborto em situações menos drásticas tudo bem, se pensa na vítima, e no feto, por que não se pensa? No caso do risco à mãe é o mesmo, o feto não tem proteção. Então porque a preocupação com o feto, que não pode ser expulso, quando há vida ou sobrevida somente no útero?”

Juiz discorda do argumento de alguns colegas

A tecnologia é considerada nas sentenças de anencefalia analisadas pelo juiz Ivanaldo Bezerra. Para ele, o juiz e o direito não podem esquecer do avanço das ciências médicas.   Detectar a anomalia no princípio da formação do feto tem contribuído para essas decisões. O Código Penal é de 1940 e, portanto, não poderia prever que seria possível acompanhar a formação do feto passo a passo.

“O auxílio da tecnologia para a ciência médica é extraordinário. Direito, sociedade e Estado não podem esquecer dessa ferramenta”, afirma. Ele discorda de argumentos utilizados por alguns juizes para as decisões a respeito do assunto, como a analogia jurídica, quando na ausência de uma lei específica, os magistrados tomam uma lei já existente como parâmetro, nesse caso, o artigo 128 do Código Penal.

“Respeito, mas não concordo com essa avaliação. A situação é nova e precisa de uma análise também mais moderna”, explica. Ivanaldo destaca que as normas do ordenamento jurídico do País são compostas também por princípios, que oferecem embasamento ao juiz quando a lei deixa lacunas. Um  exemplo é o princípio da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República Federativa Brasileira.

“No artigo primeiro, vem antes de tudo, até do princípio à vida, e permite que o juiz busque resposta a qualquer situação”, diz. O princípio inclui a soberania, cidadania e dignidade para qualquer brasileiro, e são vértices do sistema. “Qualquer decisão deve ser construída a partir disso”. Há ainda outros princípios, como o do respeito à autonomia da vontade da mulher.

Muita gente não se previne, diz médica

Diariamente, a maternidade do Hospital Santa Catarina realiza entre 10 e 12 curetagens uterinas em consequência de aborto. Os dados  incluem casos de aborto espontâneo e provocados, porque nem sempre é possível identificar clinicamente qual dos dois ocorreu. E essa  estatística pode variar em períodos pós Carnatal e Carnaval, explica a diretora médica do Hospital, Kátia Mulatinho.

Ela atua na unidade há 23 anos e comenta que essa média tem se apresentado por vários anos. Sobre a legalização do aborto nas mais diversas situações, Kátia faz algumas ressalvas. O acesso à informação e meios contraceptivos estão bastante difundidos, na opinião da médica. “Há um amplo acesso a métodos contraceptivos, qualquer estudante hoje de 12 anos sabe disso, tem em revistas para jovens”, diz.

O acesso gratuito dos métodos nos postos de saúde e o programa de Farmácia Popular, onde é possível adquirir medicamentos a preços populares, também são listados pela médica como fatores que tornam a prática desnecessária. “Mesmo assim, muita gente não se previne, a adolescente acha que não vai acontecer com ela, como ocorria em séculos passados”.

Por outro lado, hoje é também fácil adquirir no “mercado negro” o medicamento usado em abortos provocados. O remédio teve comercialização proibida pelo Ministério da Saúde, porque se originava a outra patologia. “Não sei quanto custa, mas segundo pacientes, cobram por cliente, observando o poder aquisitivo e o desespero. Todo mundo paga para se ver livre de uma situação difícil”.

Para Kátia, antes de partir para a problemática do aborto, deve ser melhor discutida a responsabilidade do casal na prevenção da gravidez indesejada, e acredita que a influência religiosa na cultura do País tem grande repercussão sobre as leis. “Nenhuma mulher gosta de abortar ou quer engravidar de maneira indesejada”, comenta.

“É um trauma que carrega para o resto da vida, além do risco de complicações como infecção, hemorragia, perda de útero e até morte em decorrência desses agravamentos”.  Especificamente para os casos de malformação do feto, ela acredita que as sentenças judiciais favoráveis têm sido mais frequentes nos últimos dois anos. “Antes era mais difícil conseguir liminar para interromper a gestação, como em casos de anencefalia”.

Programa tem preocupação com a mulher

Dor, vergonha, preconceito são apenas três sentimentos experimentados pela mulher que é vítima de uma violência sexual. Quando praticada sem proteção, a angústia é ainda maior: o risco da gravidez indesejada. O Programa de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Pavas), que funciona no Hospital Santa Catarina, recebeu há cerca de 15 dias uma dessas vítimas, encaminhada por uma delegacia especializada.

A mulher, de 28 anos, era casada, mãe de três filhos e relatou estar grávida após um estupro sofrido na rua por um estranho. Avaliada pela equipe de saúde, constatou-se que seu tempo de gestação condizia com dia em que ela alegou ter sofrido a violência: mais de 10 semanas. Informada da opção de deixar o bebê para a adoção após o nascimento, ela optou por interromper a gravidez, prevista pela lei.

Como se não bastasse o trauma, a paciente tinha um histórico de abuso sexual na infância. Com o relato, a médica Adriane Colei lembra da importância do primeiro atendimento à vítima de violência sexual ocorrer imediatamente. “Quando a paciente não usava nenhum método contraceptivo, é medicada com o contraceptivo de urgência, conhecida como pílula do dia seguinte”. 

A eficácia é de até 90% dos casos nas 48 horas após o ato sexual. O Programa de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Pavas) funciona desde 1999 mas ainda é pouco conhecido como referência nesse tipo de assistência. Segundo Adriane Coeli, as vítimas que procuram o Pavas apresentam um perfil de medo e muito fragilidade.

“Elas se preocupam sobre como vai ser o atendimento e têm vergonha de contar o que aconteceu, por isso temos que ter muito cuidado ao lidar com cado caso, como ouvi-la. Não estamos aqui para julgar a mulher”, frisa a médica. Ela orienta que a mulher busque o atendimento antes mesmo de ir à delegacia.  “O boletim de ocorrência pode ser feito depois, orientado por nossa assistência social, e nosso prontuário de atendimento tem valor legal”.

O protocolo de atendimento  inclui exame físico para verificar possíveis lesões e medicações para  prevenir também as Doenças Sexualmente Transmissíveis. “Essa rotina   evita um dano maior”, conclui. Para que se flexibilize a prática, porém, é preciso pensar em todo o contexto social em que a mulher está inserida, opina  a ginecologista e obstetra.

Bate-papo » Manuel S. Pontes, defensor público

Em que se baseou o artigo sobre anencefalia em decisões judiciais?
Estudei bastante coisa, entre elas os estudos de dois médicos argentinos explicando a doença, vi pesquisas no meio jurídico sobre o posicionamento de juízes  e  promotores no tema.

A nova versão tem um capítulo tocando na parte religiosa, por que?
Por mais que discutamos o direito, não podemo escapar do cunho religioso. O tema é importante  porque o STF não discute apenas o mérito da ADPF, mas quando começa a vida do ponto de vista jurídico. É claro que os que têm o ponto de vista religioso querem ver sua versão da realidade assinada pelo STF, então há uma disputa de meios de ver a vida. Ela envolve ainda a filosofia, que discute  há muito tempo a origem da vida. Por exemplo, na vertente religiosa, que me parece ser a mais exaltada, a Igreja Católica só passou a acreditar que a vida começa com a concepção depois de 1500. Antes, o entendimento católico se baseava nos estudos de São Tomás de Aquino, que dizia que a vida começa a partir do quadragésimo dia de gestação, quando o feto passaria de inanimado a animado, ou seja, uma pessoa.

Como andam as decisões no País acerca do assunto?
Mais de 80% dos promotores são a favor, mais de 90% das decisões são favoráveis, porém, em virtude da lentidão do judiciário e da complexidade do tema, o resultado muitas vezes só vem depois do nascimento.

O que mostram os estudos sobre anencefalia?
Existe uma série de malformações, a anencefalia é um exemplo totalmente incompatível com a vida, o feto não tem condições de funcionar fora da barriga da mãe, a não ser com uma UTI  Neonatal muito avançada que ajude na circulação sanguínea, respiração, etc.  Os médicos argentinos explicam que o anencéfalo não ao menos o córtex frontal, responsável pela cognição, empatia, autoconhecimento e identificação de outras pessoas. O feto anencéfalo tem uma serie de limitações e 75% é abortado naturalmente, porque o próprio corpo percebe a inviabilidade. Vale ressaltar que quando falo da UTI há uma resolução do Conselho Federal de Medicina que desaconselha esse tipo de auxílio, haja vista não haver viabilidade do feto sobreviver.

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