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Semear livros

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Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador da República

“Oh! Bendito o que semeia/ Livros…livros à mão cheia…/E manda o povo pensar!/O livro caindo n’alma/É germe — que faz a palma/É chuva — que faz o mar”. Sempre adorei esse trechinho do poema “O livro e a América” do nosso Castro Alves (1847-1871). Compondo o livro “Espumas Flutuantes” (1870), o único publicado em vida pelo romântico baiano, houve um tempo em que esses versos eram declamados várias vezes ao dia na televisão brasileira em uma campanha para incentivar a leitura e o estudo.

E esses versos aqui são o mote, em forma de homenagem ao “poeta dos escravos”, para eu voltar a cuidar da temática da leitura, dos livros e das bibliotecas (vide a crônica “A primeira biblioteca”, de duas semanas atrás), agora retratando uma interessante campanha, em prol da leitura, que vem sendo empreendida por um dos mais populares jornais londrinos, o “Evening Standard”. Esse jornal – que circula, de segunda a sexta, no finzinho da tarde para o começo da noite -, tem uma história bastante interessante. Durante quase dois séculos vendido na rua por pessoas postadas em um banquinho, passou, há cerca de dois anos, a ser dado gratuitamente. Essa mudança, por final, causou muito furor, sobretudo com reclamações dos antigos jornaleiros, que achavam que perderiam suas rendas. Mas a coisa deu certo. Basicamente, os jornaleiros agora são pagos para distribuir o jornal e, certamente, nunca se leu tanto o “Evening Standard” como agora. Sua proposta, claro, não é a de um jornal de altíssimo nível, mas ele também não é um daqueles escandalosos tablóides ingleses (apesar do seu formato editorial ser esse).           

O fato é que o “Evening Standard” atualmente comanda uma campanha, denominada “Get London Reading”, para incentivar o hábito da leitura entre aqueles que vivem na capital do Reino. A campanha apela diretamente ao leitor e aos potenciais apoiadores e, entre outras coisas, tenta arrecadar fundos (e já vai em vários milhares de libras), incentivar a doação de livros e engajar pessoas para trabalhar voluntariamente – em uma espécie de tutorial individual – com crianças e jovens com dificuldade de leitura e aprendizado, sobretudo em escolas/áreas menos favorecidas.   

Além do apelo direto ao leitor, a cada dia o jornal publica uma historieta de sucesso, como a de um garotinho que, faz três anos, vindo de Singapura, chegou a Londres sem falar uma palavra de inglês (falava um rudimentar mandarim). Hoje, com seis anos, já “devorou” todos os livros da pequena biblioteca local, com um recorde de mais trezentos livros em menos de um ano. Agora, ele é um das estrelas da campanha com sua foto, rodeado de livros, estampada no jornal. Focada também no público adulto, em tempos de Ipad, Kindle e livros em formato eletrônico, a campanha do “Evening Standard” tem disponibilizado livros para “download” gratuito na Net. E o jornal conta o caso de uma senhora, hoje com setenta anos, mas que apreendeu a ler há apenas seis anos: com o acesso gratuito a livros em formato eletrônico mais simplificado, essa senhora e todos aqueles mais informatizados agora navegam também na onda (leia-se, campanha).

Também ganharam espaço no jornal as empresas que têm contribuído com a campanha, como as enormes livrarias Foyles e Waterstones, que doaram livros (ou o resultado das vendas de seus livros), além de estamparem, nas suas gigantescas lojas de Charing Cross e Picadilly, respectivamente, cartazes propagando a campanha. E não só as grandes livrarias entraram na onda. Jornalistas, gente do show business e empresas dos mais inusitados ramos, como a cadeia de hotéis Radisson Edwardian e a de roupas French Connection (e aqui vai a moda a serviço da literatura), também embarcaram juntos. E nessa simbiose do jornal com os apoiadores não só os potenciais leitores – sejam eles dois, dez ou milhares – ganham. Todos ganham. Afinal, quanto custa um espaço, com uma matéria deveras elogiosa, em um jornal de grande circulação?

A verdade é que são tempos difíceis por aqui. O Reino Unido ainda não se recuperou – e acredito que levará muito tempo para tanto – da crise financeira mundial que teve seu pico faz alguns anos. O governo daqui, assim como os da Espanha, Irlanda, Portugal, Grécia etc., fala incessantemente em austeridade. O sistema de ensino como um todo sofre tanto financeira como qualitativamente, o que é motivo de debates e protestos. E nessa guerra visando o corte de gastos vai junto a verba para a manutenção das utilíssimas, para fins de incentivo ao hábito da leitura, bibliotecas públicas (aliás, algo que, infelizmente, vem acontecendo também nos Estados Unidos). Mas em tempos de “guerra”, a sociedade e o Estado, por aqui, procuram dar seus pulos. Além de campanhas como a do “Evening Standard”, algumas das bibliotecas de bairro em risco de fechamento, por exemplo, já acharam a solução de fundirem os recursos humanos, a aquisição e o empréstimo de obras e outros gastos, economizando para sobreviver, enquanto passa esse período mais crítico.

Para imitar (e que imitemos as coisas boas!), sob as bênçãos de Castro Alves, apenas digo: bendita a ideia de semear livros, “livros à mão cheia”, rogando à sociedade ajudar. O livro caindo na alma é “germe que faz a palma” nesta terra (chuvosa) rodeada de mar.

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