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Simenon no tribunal (I)

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Marcelo Alves Dias de Souza – Procurador da República

O Comissário Jules Maigret, criação do escritor belga Georges Simenon (1903-1989), é um detetive peculiar. Taciturno e compreensivo, um homenzarrão bom de garfo e copo, sua empatia pelo ser humano (até os mais estranhos tipos) é certamente o traço mais característico da sua personalidade. Tirando, é claro, sua queda pelo cachimbo.

Simenon nos deu, ao todo, 103 “Maigrets”, sendo 75 romances/novelas e 28 contos, tendo como ponto de partida “Maigret Pietr-le-Letton”, de 1931, e de chegada “Maigret et Monsieur Charles”, de 1972.

Dentre os “Maigrets” que já li, um dos mais interessantes para os estudiosos do Direito é “Maigret no tribunal”, de 1960. Em uma edição de bolso da L&PM, de 2013, ele caiu em minhas mãos por esses dias.

Nesse romance/novela de pouco mais de 150 páginas, Maigret – um detetive com um senso de justiça próprio, cujo método de investigação requer absorver a atmosfera do local do crime e compreender as condutas e a “psique” de todos os envolvidos na trama – confessa o seu “desconforto” para com os ritos e a pompa da Justiça criminal.

Para Maigret, que trabalha no número 36 do Quai des Orfèvres, uma das alas do Palais de Justice de Paris, ir a uma audiência criminal significa apenas atravessar alguns corredores. Entretanto, para ele, a sala de audiência Palais de Justice, embora fisicamente tão próxima do seu “familiar” ambiente de trabalho, é outro mundo, no qual as palavras não têm o mesmo sentido que nas ruas, “um universo abstrato, alegórico, ao mesmo tempo solene e impertinente”. Segundo Maigret, tudo no tribunal é falso. “Não por culpa dos juízes, dos jurados, das testemunhas, não por causa do código ou dos procedimentos judiciais, mas porque seres humanos se viam de repente resumidos, se é possível dizer, em algumas frases, em algumas sentenças”, diz ele.

Se pudesse, Maigret teria ignorado, ou pelo menos se mantido distante, desses últimos procedimentos da persecução criminal, aos quais, mesmo protagonizando mais de uma centena de estórias de Simenon, nunca se habituou. Todavia, é na Justiça criminal, queira ou não o Comissário (e, na vida real, queiramos ou não nós mesmos), que desembocam os inquéritos policiais a partir do oferecimento da denúncia. Quantas vezes não esteve ele, Jules Maigret, 53 anos, comissário da Polícia Judiciária de Paris, nas estórias imaginadas por Simenon, a prestar depoimento perante o juiz de um caso?

Por outro lado, se o Comissário Maigret confessa o seu desconforto para com os ritos da Justiça, Simenon, não obstante autor de ficção, revela uma contrastante familiaridade, talvez mais intuitiva do que outra coisa, sobre como funciona a Justiça criminal.

Embora Simenon não fosse propriamente um estudioso do Direito, ele tinha certa experiência nessa área, pois trabalhou como repórter forense na juventude, um background que muito o aproxima, recordo agora, de Charles Dickens (1812-1870), talvez o maior romancista da língua inglesa. O fato é que Simenon foi um conhecedor da vida. Não só da vida parisiense mais glamorosa, de seus cafés, brasseries, bistrôs e comércios menos recomendáveis, de suas mulheres de vida fácil ou difícil, mas também de seus crimes, de seus criminosos e de suas vítimas, e da Justiça criminal que a todos julga, muitas vezes sem fazer a devida distinção.

Em “Maigret no tribunal”, pela boca do seu detetive, Simenon nos fala, por exemplo, do juiz de instrução e do juiz de sentença franceses, do júri em França e até mesmo de institutos bem mais técnicos, como a denominada carta rogatória.

Entretanto, de Simenon em “Maigret no tribunal” o que mais me impressionou foi sua capacidade de nos revelar, na ficção do seu romance, como o ambiente de uma sala de audiências, na Justiça criminal, é esquematizado e asfixiante.

E sobre isso falarei na semana que vem. Rogo, mais uma vez, um pouquinho de paciência.

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