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Tribulação e dádiva do poema “Tabacaria”

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Nelson Patriota [ escritor ]

Um poema pode cumprir um destino decisivo simultaneamente na vida de personagens reais e de ficção. Com o poema “Tabacaria”, que Álvaro de Campos, criatura de Fernando Pessoa, escreveu no dia 15 de janeiro de 1928, isso aconteceu duas vezes. Um caso se deu com João da Silva Esteves, personagem do livro “A máquina de fazer espanhóis”, de walter hugo mãe. Esteves se distingue dos demais “hóspedes” do abrigo Feliz Idade, no romance, por se dizer o “Esteves sem metafísica” a que alude o poema em seu desfecho. Essa aura (ou lenda) é suficiente para torná-lo um homem feliz, poupando-o de compartilhar a triste sina dos seus companheiros de abrigo. Ser o Esteves de Fernando Pessoa é o seu cartão de apresentação a quantos entrem naquela casa de retiro, onde todos se anulam pouco a pouco. Menos esse Esteves que, “sem metafísica”, se sobressai por uma superior felicidade entre seus iguais. Centenário, quem poderia contestar-lhe o privilégio de ter acenado para Pessoa e recebido deste o gesto correspondente, em retribuição?

No caso do italiano Antonio Tabucchi, o encontro com o poema “Tabacaria” teve como palco a Paris dos anos 1960. Leu-o em sua versão francesa, “Bureau de Tabac”, de Armand Guibert, e o impacto que lhe causou a leitura repercutiu profundamente em sua vida, redirecionando-a para um único propósito: o “pessoísmo”, um credo literário centrado na obra de Fernando Pessoa a que o escritor italiano, morto no dia 25 passado, em Lisboa, se manteve sempre fiel.

A certa altura do poema, Álvaro de Campos divisa um movimento na tabacaria de frente a sua casa. É um cliente que deixa a loja, certo Esteves a quem ele define pela propriedade de ser “sem metafísica”. Trata-se certamente de um cético que, infenso a dúvidas, vivia tranquilo em seu canto, a ponto de ter despertado a curiosidade do poeta. Álvaro de Campos, ao contrário, atormentado por questões filosóficas de difícil solução, precisa de um rosto familiar para retomar contato com o mundo real. Por isso, ao reconhecê-lo , grita-lhe: “Adeus ó Esteves!”. O poema diz, em seguida, que o universo se reconstruiu para ele, “sem ideal nem esperança”.  

É possível que o assombro sentido por Tabucchi durante a leitura francesa de “Bureau de Tabac” tenha sido deflagrado com os versos inaugurais do poema, distribuídos, em crescendo, em quatro linhas: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”.

O problema é que não são os sonhos a matéria preferencial do poema, como Tabucchi deve ter se dado conta. É justamente sobre a inutilidade dos sonhos que versa “Tabacaria”; poema que prega uma descrença total e absoluta em qualquer certeza e a convicção de que a própria ideia de um eu é um peso insuportável: “Vivi, estudei, amei, e até cri, / E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu”. Numa outra passagem, ele se põe a comparar a inutilidade do seu ofício de poeta com a do proprietário da tabacaria: “Ele morrerá e eu morrerei. / Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos. / A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também”. O niilista Álvaro de Campos, porém, vai mais fundo, prevendo o fim da rua onde esteve a tabuleta, da língua em que foram escritos os versos, e até do “planeta girante” em que tudo isso se deu.

Mas talvez o maior espanto causado ao jovem Tabucchi, durante a leitura de “Tabacaria”, tenha sido por não entender como é possível conceber uma grande obra poética partindo de uma poesia que nada deixa de pé à sua passagem. Essa dúvida ainda reclama sua resposta.

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