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Uma experiência que arranca o chão

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Por Michelle Ferret – especial para o Viver

“Os homens sabem fazer tudo, menos ninhos de pássaros”. A frase chega como quem invade os espaços mais sagrados de dentro. Projetada num tecido – como uma pele – ela divide o público do ator no momento de sua preparação para entrar em cena. Lá, ele se mexe, aquece e prepara o corpo para emanar e receber o material mais nobre da existência: a memória. É assim que a experiência dramatúrgica “Portar(ia) Silêncio” inicia. Em cartaz no Salão Nobre do Teatro Alberto Maranhão todos os dias até o próximo sábado (06), sempre às 18h, a experiência ganha força na visão de mundo do ator/criador João Júnior. Potiguar radicado em São Paulo, ele viveu de perto e na pele a realidade de nove porteiros dos arranha-céus daquela cidade, revirando suas trajetórias, memória e abrindo o baú para que o público revire. A sensação de assistir as vidas ali é como se pudéssemos rever a nossa própria rota. Essa que modifica a cada respiração, a cada impulso de nãos e sins. Com suporte do audiovisual lançado por Lina Lopes, o espetáculo respira em diferentes esferas quando imagens da portaria, câmeras de segurança, do mar, dos trilhos do metrô e dos trens da vida aparecem e desaparecem no trânsito livre de nossos pensamentos. É travessia a palavra norte da experiência que, segundo o próprio criador, ainda está em construção. A experiência de assistir ao silêncio e às portarias apresentadas nos leva para não lugares distraídos de dentro. João traz momentos das entrevistas feitas com os porteiros para seu corpo que também são projetadas no corpo da origem dessa palavra e assim constrói um diálogo aberto entre os que migram e os que permanecem.

Projetada num tecido - como uma pele - frases e imagens dividem o público do ator nas cenas de Portar(ia) Silêncio, experimentação dramatúrgica do ator João JúniorDepois da preparação de corpo, o ator entra em cena, atravessando a pele de projeção e o público participa então do seu silêncio. Logo após vestir-se da portaria dos mundos, ele senta e aguarda numa mesa similar a de uma portaria de qualquer prédio. É quando o público consegue acompanhar o tédio e o cotidiano de um porteiro nas grandes metrópoles. Inquietante, doloroso e até cansativo, são sensações que chegam naturalmente. É esse cotidiano que de tão silencioso e quieto pode alucinar e criar ilusões nos pensamentos. A pulsão de morte e de vida também é muito forte dentro desta narrativa. A morte está presente nas falas, na busca por um lugar e na ausência de estar em outra cidade.

O silêncio é quebrado com as histórias deliciosas de fuga quando a memória do próprio ator abre os caminhos para as outras memórias e aponta o seu desejo latente de fugir de casa desde criança, quando levava na mala de papelão poucos pertences e a vontade de ganhar o mundo. É esse mar que se abre no público enquanto João recita as vidas. São recortes de existências ressaltados por lupas de aumento do teatro que faz o público rever a própria fuga de seu mundo. Quem nunca teve vontade de sair de casa e voar por outros lugares? Entre os desejos de ir embora e da vontade de retornar, como um eterno retorno sitiado em Nietzsche,a palavra saudade se desgarra do chão sagrado do teatro e alcança a realidade de cada espectador. Sentados dentro do ambiente da portaria, somos carregados pelas palavras, pelas luzes acesas das cidades e pelo trânsito incontrolável e alucinante de São Paulo, até encontrar o mar. Esse mar em que o som é o mesmo do metrô e confunde a música da vida. Com poucos recursos cenográficos, onde uma mesa com livros, um rádio de pilha, uma cadeira que vira edifício e lâminas de projeção fazem um mundo, a iluminação do espetáculo é uma fortaleza. Quando somos envolvidos por luminárias e isso transforma o lugar e assim o espectador passa a pertencer aquele espaço. O desenho de Luz feito por Lina Lopes é acrescido da preparação de corpo de Joana Levi e ainda ganha a costura perfeita da supervisão artística e roteiro de Luiz Fernando Marques (Lubi). Juntos com a criação latente de João Júnior, eles conseguem construir um mundo. Esse em que nós enquanto seres, estamos inseridos e migramos todos os dias e todos os anos para um mesmo lugar, o da existência. A experiência precisa e merece ser vista por todos os homens e mulheres desta terra, quando podemos nos enxergar de uma maneira mais pura enquanto gente e assim conseguimos acender as velas nesse mundo eletrificado. Ou como a citação que aparece em pleno espetáculo “aproveitou uma revoada de pássaros selvagens para evadir-se”. Evadir, voar, existir, palavras que se costuram por dentro “avoam”.

Saiba mais…

A Experiência “Portar(ia) Silêncio” está em cartaz até próximo sábado no Teatro Alberto Maranhão, sempre às 18h e a entrada é gratuita. O projeto foi contemplado no Prêmio Myriam Muniz de Teatro 2009.

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