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Zila e outros retratos de Edson Nery

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Nelson Patriota – Escritor

Ao prosador Edson Nery da Fonseca nunca falta de memória um verso de Dante ou Shakespeare e, especialmente, de Manuel Bandeira, Zila Mamede ou Carlos Drummond de Andrade. Com tal talento, atende por inteiro aos requisitos de homem culto exigidos pelo ex-ministro da Educação Gustavo Capanema (“Um homem culto é aquele que tem sempre um grande poeta ao alcance da mão”).

É sob a guia de Bandeira que Edson Nery, do alto dos seus 85 anos de dedicação à “forte certeza” que toda fé pressupõe, mas também à biblioteconomia e à cultura em geral, reincide no exercício de lembrar e relembrar pessoas, deixando claro que não lhe move outra paixão. Assim já fizera em livros como O Recife revisitado, Vão-se os dias e eu fico e, agora, repetindo uma fórmula já consagrada, no livro Estão todos dormindo, lançado este ano. O título é retirado do conhecido poema bandeiriano Profundamente, que a certa altura diz: “Quando eu tinha seis anos / Não pude ver o fim da festa de São João / Porque adormeci // Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo / Minha avó / Meu avô / Teotônio Rodrigues / Tomásia / Rosa / Onde estão todos eles? // — Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente”.

Ao contrário dos mortos evocados pelo poeta de Estrela da Manhã, esses recolhidos por Edson Nery são capturados nos seus afazeres em breves perfis, suficientes, porém, para ressituá-los no nosso tempo, através de um gesto, de uma frase, de uma atitude que se aninhou na privilegiada memória voluntária do autor.

A poetisa Zila Mamede é lembrada em Estão todos dormindo também como bibliotecária que passou pelas classes de Edson Nery. Resumindo essa última faceta da autora de Navegos, Edson sentencia: “Ela era a avis rara numa atividade cheia de grandes ignorâncias gerais especializadas em catalogação e classificação”.

O artigo de Edson Nery sobre Zila serve de pretexto para que lembre idiossincrasias e talentos diversos da eclética bibliotecária que foi também excelente poetisa, e cuja paixão pelo mar inspirou seus melhores e mais profundos poemas. Diz Edson: “Em Zila Mamede a paixão pelo mar nada tinha de platônica. Ela se lançava às ondas com uma volúpia não apenas de nadadora exímia, mas de verdadeira comunhão panteística. Sua obra poética está, por isso, impregnada pelo mar e pelas salinas de Natal, a mais talássica das cidades brasileiras”. 

Dois poetas pernambucanos ganham visibilidade nessa galeria de mortos recolhidos do limbo contemporâneo pelo grande memorialista olindense. Ascenso Ferreira, o poeta da devastada Palmares, e Mauro Mota, que perece o epítome de “poeta da compaixão”, especialmente se se considera seu “Boletim Sentimental da Guerra no Recife”, nas palavras de Nery, “o mais representativo de duas características de sua obra: a compaixão e a conciliação tanto entre o local e o universal como entre o tradicional e o moderno”.

Evocação não menos candente é a do erudito escritor Otto Maria Carpeaux, com quem Edson Nery da Fonseca trabalhou, durante o período em que aquele preparava sua “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”. Em seu livro, Edson Nery reconstitui um episódio de triste memória para a diplomacia brasileira sob o arbítrio instaurado em 64: a tentativa de cassar o processo de naturalização do grande escritor romeno-brasileiro, sob o onipresente subterfúgio de ser comunista… O fato mais grave em torno do affaire Carpeaux é o desaparecimento do processo constante no Arquivo Nacional, fato, de acordo com o memorialista, até hoje não esclarecido.

Enfim, não se pode esquecer o belo retrato de Edson Nery do poeta Carlos Drummond de Andrade, que é uma de suas grandes admirações, e no qual evoca a “Ode a Jackson de Figueiredo”, depois excluída de todos os seus livros. Além de discutir os motivos que levaram o poeta de Itabira a repudiar esse poema, Edson Nery o reproduz por inteiro, brindando seus leitores com essa ode “deserdada” certamente não por motivos estéticos!

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