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Os prêmios e o feijão com arroz literário

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Carlos de Souza
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Encontrei este artigo de Henrique Rodrigues Neto, na página do Publishnews, do dia 31 de outubro de 2016. Henrique Rodrigues nasceu no Rio de Janeiro, em 1975. É especialista em Jornalismo Cultural pela Uerj, mestre e doutor em Letras pela PUC-Rio. Trabalha na gestão de projetos literários no Sesc Nacional. Participou de várias antologias literárias e é autor de 11 livros, entre os quais o romance O Próximo da Fila (Record).< www.henriquerodrigues.net >.

“Na última cerimônia de entrega do Prêmio São Paulo de Literatura, o escritor Marcelo Maluf, ao ser anunciado vencedor na categoria estreantes acima de 40 anos pelo livro A imensidão íntima dos carneiros, me surpreendeu. Dedicou sua vitória “aos professores, bibliotecários, mediadores de leitura e a todos que trabalham pela construção do pensamento crítico, pela compreensão da diversidade, da liberdade e da sensibilidade, aos seres humanos que tem fome e sede de fabulação e do saber”.

A surpresa veio pelo fato de que o belo romance tem pitadas da – muitas vezes erroneamente criticada – autoficção: o autor mergulhou nos seus antepassados árabes para construir uma bela narrativa lírica. Há quem critique esse recurso de escrita, muitas vezes associando a figura do escritor que usa algum elemento da própria vida como elemento de fabulação a um ególatra inveterado. Não que eles inexistam, pelo contrário. São muitos os casos, na cena cultural e midiática brasileira, de personas literárias cuja imagem fica muito aquém do que escrevem. Mas isso é um debate para outro momento. Ou talvez nem mereça.

O que Maluf trouxe de diferente foi, em plena celebração por um feito à primeira vista individual, ter oferecido a premiação ao coletivo, ao universo fora do umbigo, às figuras invisíveis que contribuem, com todas as dificuldades, para que se forme o leitor literário num país com índices tão vergonhosos.

Quando o vi recebendo a premiação, falando para uma plateia em que o governador Geraldo Alckmin figurava na primeira fila, e que logo em seguida iria anunciar o prêmio principal a Beatriz Bracher, não pude deixar de enxergar como um ato de ousadia e transgressão. Sob os flashes de um dos principais prêmios literários na maior capital do país, o jovem (ou seminovo, como digo sobre nós que beiramos os 40) autor não nos deixou esquecer do que é realmente importante: a leitura e os leitores.

Por um tempo, voltei para pouco mais de um mês, na Bienal do Livro de São Paulo. Participava de um debate sobre a importância dos prêmios literários e a sua participação na formação de leitores. Havia representantes do Jabuti, Oceanos, do próprio Prêmio São Paulo e eu sobre o Prêmio Sesc. Do lado de fora da sala onde falávamos, uma multidão gritava para ouvir e tirar selfies com um youtuber. Por vezes, nosso debate teve de ser interrompido até que o barulho diminuísse. Mas na hora lancei para os colegas de mesa umas perguntas que até agora me instiga: por que há uma distância tão grande entre os dois mundos? Como fazer para que esses jovens interessados pelo objeto livro, que vêm lotando esses eventos de grande porte, possam conhecer os autores que descobrimos e celebramos nos prêmios literários?

Algumas respostas simples poderiam surgir. Inclusive uma primeira mais simples: está bem assim porque se tratam de dois extremos incompatíveis, com a “alta literatura” premiada sendo complexa demais para ser lida pela choldra, que segue as leis do mercado em busca os livros da moda, e no caso a bola da vez são os youtubers. Esse pensamento, além de preconceituoso, seria frívolo demais para quem já lidou tanto com livros de premiados quanto com os jovens que estão lendo mais hoje. Ser um leitor fã de determinado tipo de livro não significa que o indivíduo seja fechado para novas ideias e formatos. Pelo contrário, tenho participado de muitos eventos literários com jovens e o que percebo é um desejo grande por novas leituras. Em muitas ocasiões, basta um papo com grupos de leitores para que nossas certezas sejam revistas e atualizadas.

Outra resposta seria pela aproximação dos autores premiados com o público em bate-papos. Bem, essa etapa é cumprida de certo modo pela maioria dos prêmios. O São Paulo, Oceanos e Sesc promovem encontros dos seus finalistas ou premiados, sendo que o último os leva para diversas atividades literárias em diversos lugares do país. Mas ainda assim isso não significa que os encontros se revertam em leitura efetiva. Em muitos casos o público quer apenas saber sobre a rotina do escritor e seus “processos criativos”, ou apenas tirar fotos. Mas quase não compra os livros.

E também não se deve esperar que os escritores sejam performers do palco. Vale lembrar o caso do escritor Rafael Gallo, que também venceu o Prêmio São Paulo na categoria estreante com menos de 40 anos com o romance Rebentar. Depois de conversar com leitores numa Bienal, recebeu um bilhete no qual era sugerido que fizesse mais stand up, provavelmente porque sua fala não era circense como se esperava.

Daí a importância também dos modelos de divulgação, esse assunto que também é um nó. As editoras investem pouquíssimo para divulgar as obras nacionais que não tenham grande potencial de venda. Há muito vigora uma linha de pensamento segundo a qual o lucro advindo dos best-sellers é que torna viável a publicação dos livros que vendem menos. Essa regra coloca os autores brasileiros num status de resignação cotista, como se fosse um grande favor ter o seu livro publicado. Quando o título é premiado, pode no máximo voltar às livrarias com uma tarja de vencedor, mas por pouco tempo, já que a fila das gôndolas anda rápido e os best-sellers estão esperando.

Por outro lado, não podemos nos esquecer das campanhas de formação de leitores. Ainda que existam muitos projetos de pequeno e alguns de médio porte de norte a sul, não há hoje no país uma grande política de leitura em execução. Educação e leitura são palavras muito bonitas em campanhas políticas, mas remodelar o formato do ensino de literatura e instituir o livro como um bem cultural desejável no âmbito familiar é tarefa para muitos anos. E o resultado, depois de grande investimento e trabalho, começaria a ser percebido em mais tempo do que dura um mandato de governo. Seria fundamental a implantação de política de Estado, que se sustentasse em todos os governos, ou apesar deles.

Com esse quadro, vivemos um boom literário no Brasil, de qualidade e quantidade, cuja explosão tem alcance ainda muito restrito. Num mundo perfeito, os livros vencedores de prêmios literários, pela divulgação que recebem, entrariam rapidamente para as listas de mais vendidos. Pessoas os leriam nos transportes públicos e exemplares permaneceriam nas vitrines das livrarias durante longo período. E não é o “mercado” que vai mudar essa situação.

Por isso vale repetir a dedicatória de Marcelo Maluf. Paralelamente aos grandes prêmios e eventos literários, precisamos olhar seriamente para o trabalho cotidiano da formação de leitores, o feijão com arroz que possa dar sustância na formação de consumidores de cultura livresca. São ações regulares, sistemáticas e pouco visíveis que, aplicadas em escala, podem fazer a necessária ponte entre os grandes livros e os potenciais leitores deles”.

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