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Lembranças incômodas de Renard Perez

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Nelson Patriota – Jornalista

“Vida é viagem”. Há muitas verdades contidas nestas três palavras e nas suas diversas variantes, como o adágio português “navegar é preciso, viver não é preciso”, opção, aliás, fortemente decidida, de tal modo que supõe eleger a viagem como única alternativa: navegar (viajar) ou morrer. Em suma, a vida só valeria a pena enquanto oferecesse a possibilidade de uma viagem.

Não é bem disto de que tratamos. Por isso, voltemos ao adágio “vida é viagem”. Entre outros significados que se pode extrair desse sucinto brocardo de tons filosóficos, decorre que viajar é uma forma superior de viver, um jeito de desfrutar das benesses da vida. Mas é evidente também que o inevitável viés filosófico que o anima nos lembrará que a vida é também uma viagem pelo tempo, pelos dias que nos foram facultados vivermos. Essa idéia, que poderíamos resumir como “a odisséia do ser”, tem ainda a vantagem de preservar a reserva filosófica que traz implícita em seu núcleo.

Mas para que uma viagem proporcione tudo o que dela se espera, é preciso estar imbuído do espírito de explorador, dotado da curiosidade própria a uma criança, sedento de novidades como um repórter neófito na profissão.

As três características denotadas acima podem ser encontradas nos bons memorialistas, acrescidas de uma quarta: a honestidade intelectual com que trata um tema delicado como crise na relação pai-filho. O macaibense Renard Perez reivindicou para si tal condição com a publicação do seu Chão galego – viagem e memória (1 ed., Nova Fronteira, 1972) e que sai agora em edição bilíngüe português e galego pela H. P. Comunicação (Rio de Janeiro, 2007), na sua série Raízes, acrescida de prefácios e posfácio. Fosse um relato típico de viagem, essa descrição da Galícia seria apenas mais uma entre tantas outras. Felizmente, porém, Renard Perez tinha motivos muito fortes, muito pessoais para “subverter” o gênero, transformando-o numa saga existencial onde sobram impressões de lugares, mas na qual o elemento humano, visto de uma perspectiva questionadora e empática, prevalece.

Menino em Macaíba, Rio Grande do Norte, passando uma parte da adolescência em Fortaleza, Ceará, e tendo amadurecido no Rio de Janeiro, Renard é assim um homem de muitas lembranças. Capta-se facilmente essa impressão através da leitura de sua ficção, sejam contos ou romances que, embora quase sempre ambientados na capital carioca, evocam, através dos seus personagens, lembranças remotas de infância, episódios que sobraram das cinzas do tempo. Tudo vazado numa linguagem trabalhada artisticamente, o que levou o poeta Carlos Drummond de Andrade a comentar que encontrou em seus contos “a marca segura do escritor que sabe extrair da vida reflexos memoráveis, de valor artístico”. Diante disso, só podemos lamentar que sua obra ficcional esteja fora de catálogo, com exceção da novela O Beco, de 1952, e que mereceu uma segunda edição pela Editora Mileto, em 2002. Obras como Creusa, Creusa, contos (1982); Começo de Caminho – o áspero amor (1968/1983) e Irmãos da Noite (1979/1981) são alguns dos títulos de Renard Perez exigindo reedições.

A narrativa que nutre e entretece Chão Galego é de natureza mais complexa: em parte é a descrição de uma trajetória freudiana em busca do pai, em parte empreendimento literário tout court – guardando, assim, íntima relação com os episódios ficcionais exarados em outros livros do autor, mas ultrapassando as fronteiras desse gênero. A diferença é que, agora, trata-se realmente de perseguir uma lembrança até a exaustão, para dela extrair um tecido de recorte intimamente pessoal e, ao mesmo tempo, literário. Não se trata de incorrer numa aporia de fins irreconciliáveis porque dois níveis de lembranças seguem em paralelo: a narrativa da viagem e a outra, a que motivou esta última.

Nem se trata de algo mesmo longinquamente assemelhado à ontologia. Renard busca realmente o pai, (embora não somente a ele, pois busca com igual intensidade o prazer da viagem) já que a relação que manteve com ele, seu pai, na maioridade, esteve estremecida, nos últimos anos do seu convívio, por incompreensões de parte a parte, culminando com o rompimento das relações. Homem cordial, aberto aos questionamentos sociais e sensível ao sofrimento do próximo, para Renard havia um mistério a desvelar no trajeto sinuoso do romance familiar desfeito. A revelação desse enigma tornou-se assim uma necessidade obsessiva para o autor, e a única forma de desvendá-lo seria empreendendo a viagem à Galícia, porque nessa província galega da Espanha estavam fincadas há séculos as raízes dos Perez. Estavam postas na mesa as condições que levariam ao seu processo catártico.

E qual não foi a surpresa de Renard! A primeira constatação que ele faz sobre seu pai é a que fora protagonista de feitos tão memoráveis junto aos seus que se tornara objeto de culto unânime. E o leitor facilmente se convencerá de que esse relato de cunho pessoal deve mais à Recherche de Proust do que à análise de Freud!

À maneira de uma novela policial, Renard Perez, hábil romancista que é, desenrola pouco a pouco de sua narrativa um novelo de segredos e idiossincrasias familiares que prendem mais e mais o leitor. São personagens como que saídos de um feudo medieval e atirados diante de um seu parente que só viria à luz cinco séculos depois! O centro nevrálgico do livro é bem demarcado. Trata-se da localidade de Porqueirós, povoado da província de Ourense, onde nasceu o pai do narrador e onde vivem duas tias suas que vestem sempre preto por guardarem um luto eterno, fato que                lhes acrescenta um ar quase vegetal, tal a fatalidade que transparece em cada um dos seus sinais vitais!

Renard Perez não tardará a perceber que em seu entorno habitam muitos sobreviventes paternos, mas quase todos do sexo feminino. Esse fato lhe enche de indagações, mas, ao final, saberá que a maioria dos varões pereceu em aventuras buscadas mundo afora, a exemplo do que fizera tantas vezes seu pai com melhor sorte.

É para conhecer essas pessoas, inquiri-las sobre o que sabem acerca do homem que foi seu pai, que Renard Perez, movido por uma curiosidade quase insaciável, se lança em seu processo anamnésico. Uma sucessão de localidades da Galícia é visitada pelo autor e sua mulher, Helena. Aliás, em muitos momentos, essa Helena que se limita a fazer sombra ao seu Odisseu hodierno, eclipsa-se e recolhe-se para melhor facilitar a sucessão de encontros e reencontros de Renard com seus ancestrais hispânicos. Cada um desses parentes acrescenta uma pedra ao quebra-cabeça fragmentado que cerca a imagem paterna e que Renard porta como uma benção ou uma maldição, caso não o reconstitua por completo. Felizmente, porém, não faltam interlocutores informados. Primos, tias, sobrinhos, todos parecem estar à espera do parente brasileiro para dar-lhe os mais surpreendentes ou triviais pormenores sobre as aventuras de seu pai, da qual a mais espetacular é aquela de quando ele retorna dos Estados Unidos, ainda adolescente, pleno de plata, e sai distribuindo dinheiro com todos os parentes de Ourense! Nessa catarse, cabem desde porres homéricos que o narrador enfrenta estoicamente nas rondas noturnas pelos bares de Ourense, Pontevedra, Vigo, até o delírio de uma tourada madrilenha patrocinada pela mulher do generalíssimo Franco! O reencontro com a prima Raquel, companheira de travessuras de Renard na adolescência vivida em Fortaleza, é dos mais instigantes, não só pelo que revela, mas pelo que deixa nas entrelinhas.

Apesar desses incidentes de percurso, a busca que motiva a viagem ao chão galego chegará a bom porto. Com isso, o processo de educação dos sentimentos de Renard, uma vez iniciado seu curso, segue em trajetória ascendente, independentemente do fato de ser unilateral, isto é, do filho para o pai. Ante a impossibilidade da reciprocidade do gesto, porém, o filho o dá por concluído. De fato, ao fim da narrativa, opera-se a catarse (à semelhança do que acontece com Proust em O Tempo Reconquistado): o filho se reconcilia com a figura do pai por, finalmente, tê-lo compreendido em toda a sua humanidade. De quebra, dispõe agora de uma narrativa redonda, exata, e logo lançará mãos à obra narrá-la! O ciclo proustiano se fecha nesse encontro do narrador que se flagra descrevendo seu próprio fazer narrativo.

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