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República sob o domínio privado

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Gaudêncio Torquato
Escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

É possível existir um político que coloca o ideal coletivo acima de seu leque de interesses pessoais? Será que, nesses tempos de competição desvairada, alguém será capaz de entender a política como missão? A resposta carece de pressupostos, a partir de força moral do protagonista e de uma poderosa lupa para enxergar sua alma. A resposta, ademais, tem a ver com retidão de caráter.


Confúcio dizia: “se um homem consegue dirigir com retidão sua própria vida, as tarefas de governo não devem ser um problema para ele. Se ele não consegue dirigir sua própria vida com retidão, como pode dirigir outras pessoas com o espírito de correção?”.


O fato é que os perfis que não usam a política como escada para subir ao pódio do poder são, a cada dia, raros e escassos. A política virou profissão. Altamente rentável. A retidão de caráter tem se transformado em curvas perigosas.


Esta breve apresentação cai bem nesse instante pré-eleitoral. Sugere a inferência de que serão muito poucos aqueles que focarão sua campanha nas demandas populares. Aqui, ali e acolá, a política tem se distanciado do ideal aristotélico que impunha ao cidadão o dever inarredável de servir à polis. Se a utopia ainda sobrevive nos compêndios de sociologia, é, na esteira do tiroteio recíproco entre candidatos, mera promessa.


No Brasil, este fenômeno ganha intensidade. A política virou gigantesco balcão de negócios. Os papéis entre os campos público e privado são facilmente trocados, gerando superposição e invasão, enquanto a res publica se transforma em espaço das vontades pessoais. Essa prática tem ocorrido em praticamente todo o universo institucional, acentuadamente no campo da administração pública – nos níveis federal, estadual e municipal – na esfera parlamentar e até no sagrado recanto do judiciário.


Na administração pública, o comportamento das autoridades frequentemente se desvia das normas aceitas para adentrar o terreno dos interesses particulares. A isso se chama corrupção, que nada mais é que ausência de institucionalização política eficiente.


Dessa forma, o país exibe uma vasta malha corruptiva, que começa no âmbito das administrações municipais. As Prefeituras, em muitas regiões, entram no acervo particular dos prefeitos. Quanto mais distantes e localizadas nos fundões do País, tanto mais integram a propriedade particular.


Não deixa de ser muito forte a tradição do mando, herança das capitanias hereditárias. Os mandatos legislativos nas Câmaras de Vereadores constituem emprego garantido por quatro anos, com direito dos edis a usar a tribuna para barganhar, pedir favores e amealhar benesses. Apenas parte desse poder reverte-se para a comunidade, na forma de obras, benefícios e serviços sociais.


Os cargos são posses dos mandatários e não representações a serviço das comunidades. O processo decisório obedece à lógica dos particularismos e os negócios são fechados como se fossem transações comerciais entre parceiros de um jogo disputado a ferro e fogo. Por trás de tudo isso, descortina-se um manto de legitimidade, que tem como pressuposto o fato de que os congressistas, donos dos cargos, consagrados pelo voto popular, arrogam-se ao direito de usar e abusar das estruturas postas à sua disposição.


O parlamentar é exímio difusor da teoria de superposição da esfera pública pelo poder privado. Credita seu mandato a um esforço pessoal, frequentemente estribado em perdas financeiras e materiais. Portanto, o mandato – conclui – não deixa de ser uma forma de conquista de recompensas e amortização de débitos. (Sempre sugiro comparar os gastos de campanha com os ganhos de um mandato de 4 ou 8 anos). Há exceções, claro. Certos perfis exercem condignamente sua missão. Mas, como identificá-los?


Os executivos estaduais não escampam à regra geral. Esboça-se um quadro global de amoralidades e ilicitudes que só vêm à tona quando as águas sujas transbordam no copo dos donos do poder.


A dilapidação da coisa pública é um fenômeno inerente a todos os regimes políticos, mas nas culturas subdesenvolvidas assume a conformação de tragédia.


Ademais, a demagogia pavimenta a estrada dos navegantes políticos. Certa feita, passeando numa feira com um candidato a prefeito de São Paulo, um jornalista, ao ver um galo, perguntou-lhe, de repente, se seria capaz de fazer o galo cantar, caso eleito. A resposta veio de pronto: “é claro”. Idi Amin Dada, o brutal ditador de Uganda (1971-79), garantia conversar com Deus. Quantas vezes, indagou o jornalista? “Tantas vezes quantas necessárias”.


Quem tem poderes para fazer um galo cantar ou bater papo com Deus, usa muito o gogó, ou para imitar o som da ave (funcionando como ventríloquo de galinheiro e com ingresso para abrir as portas do Paraíso), ou para driblar a verdade, coisa muito comum nesses tempos de “caçar” o eleitor.


Se a resposta fosse apenas uma boutade, entraria como mais uma pérola do folclore político. Mas a mentira repetida seguidas vezes por um político tem o dom de fazer com que os ouvintes a tomem como verdadeira. E o próprio político, de tanto mentir para os outros, passa, ele próprio, a acreditar no que diz. A arte da mentira é uma obra da engenharia eleitoral.

Eleitores de outubro, cuidado.
Em tempo: a esperteza, o vale-tudo, a dramatização, os recursos artificiais, a hipocrisia e a insinceridade têm sido a tônica da cultura política na era pós-industrial.

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