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Mentira, inveja e crise

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Cláudio Emerenciano – Professor da UFRN

A condição humana identifica em sentimentos, sonhos, ideais, aspirações e deslumbramentos a fonte germinadora de suas ações e opções. Mas nada supera a fé na busca do sentido universal da vida. Do mesmo modo que a mentira não é apenas ilusão, mistificação e antagonismo à verdade. A mentira é falsidade, caminho da escuridão e das trevas, do despojamento espiritual e moral da humanidade. Em todos os tempos. Surpreende-me, ainda hoje, a inesgotável sabedoria da Bíblia Sagrada. A releitura de texto do Antigo ou do Novo Testamento me revela invariavelmente  algo novo sobre a vida, o mundo e os homens. Segundo o livro do Gênesis, a mentira está presente nas duas primeiras “quedas” do homem: quando Adão e Eva desobedeceram a Deus e comeram do fruto da “arvore proibida”, e quando Caim matou Abel. O grande Sigmund Freud, que era judeu, adicionou um outro elemento psicológico, revelador de caráter, comum aos dois episódios: a inveja. A mentira foi a felonia da resposta para encobrir a verdade, ou seja, a atitude espúria de ambicionar e destruir: a inveja a Deus na primeira circunstância,  a  de Caim na segunda. Arnold Toynbee, em “Um estudo da História”, disse que a mentira institucionalizada embota e deturpa a visão de um povo ou de uma civilização. Subtrai-lhe a percepção real, nítida e verdadeira do sentido das coisas e da vida. Talvez, por isso, Rivière, personagem de Antoine de Saint-Exupéry em “Vôo Noturno”, proclama em tom de exigência o seu mais legítimo desejo: “Nós não pedimos para ser eternos, mas apenas para não ver os atos e as coisas perderem sùbitamente seu sentido. O vazio que nos rodeia faz-se então sentir…”. As mentiras e as hipocrisias nos tempos atuais, que se alçam às dimensões planetárias através da internet, podem destituir de conteúdo humano e de vínculos espirituais as aspirações coletivas. É o caso da violência que grassa em todos os lugares, de todas as maneiras, infundindo insegurança e pânico.

Os mentirosos vivem, permanentemente, temor e medo pela possibilidade de serem desmascarados. Apesar do cinismo. Molière, dramaturgo e sábio francês, criou personagens ostensivos em desfaçatez e hipocrisia. Através deles imergiu nas características culturais e morais da Europa no século XVII. Os grandes mentirosos, portanto, são cínicos e hipócritas. Frei Bartolomeu de las Casas, em seu “Diário sobre a destruição das Índias”, disse que os espanhóis, conquistadores das Américas no século XVI, em nome da cristandade, “mataram, violentaram, estupraram, saquearam; e trouxeram para o Novo Mundo sífilis, tuberculose, peste negra, doenças venéreas, varíola, gripe e tifo”. H. Rider Haggard em seu romance “Cruzada – No Reino do Paraíso”, talvez o melhor sobre o assunto, desvenda atrocidades, misérias e selvageria dos cruzados, seu nível primitivo de higiene, sua falsa moral e pusilanimidade, em contraposição aos muçulmanos liderados por Saladino. Marguerite Yourcenar, em “A obra em negro”, desobstruiu a verdade dos tenebrosos tempos da Inquisição, que se converteu em demoníaco instrumento do mal e da iniqüidade. A Inquisição substituiu o amor e o perdão por ódio, violência, crueldade e desrespeito absoluto à condição humana. Giovanni Papini, em “Um homem acabado” (autobiografia), advertiu o mundo do seu tempo para o poder letal da mentira como instrumento de manipulação coletiva. Foi uma condenação contundente à mentira massificada no rádio por Mussolini, Hitler e Stálin. As versões sobre acontecimentos do interesse público mudavam ao sabor dos detentores do poder. A “história” era permanentemente reescrita. Tudo isso foi antevisto por Aldous Huxley em “O admirável mundo novo” (1932), e depois revisitado por George Orwell em “1984” e “A revolução dos bichos”. Também em “O zero e o infinito” de Arthur Koestler. Infelizmente, ainda hoje, novos bufões ascendem ao poder. Repetem ou renovam práticas que o mundo já eliminou: caminhos de retrocessos, repressão e intolerância, incompatíveis com a civilização democrática.

Assistimos, no mundo de hoje, a irrupção de distorções e inversões nos procedimentos democráticos. Supostas consultas populares tentam forjar legitimidade a propósitos, meios e fins autoritários. Institutos da democracia semidireta, como o plebiscito e o referendo, são esquecidos ou postergados por “consultas” desonestas, infames e farsantes. Tentam ressuscitar, assim, o que se convencionou chamar de “democracias populares”, fonte formadora de tiranos e déspotas modernos.

Entretanto o homem sempre faz, constrói, elabora, cria, procura e descobre em função de sentimentos. Os ideais coletivos de justiça, bem-estar, paz social, solidariedade, dignidade da pessoa humana, nascem no coração de cada homem Não há limites para artífices do bem. Há líderes que revelam e encarnam sentimentos universais. Vivenciam valores imutáveis e atemporais. Péricles, no século V a.C., definiu o fim da vida política: “entre nós não há vergonha na pobreza, mas a maior vergonha é não fazer o possível para evitá-la ou erradicá-la. Só o bem e o amor não envelhecem, e o principal não é o ganho, como alguns dizem, mas ser honrado”.

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