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Da boa comida

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O prefeito Carlos Eduardo Alves inaugura terça-feira, 5, véspera dos Santos Reis, o Mercado Modelo das Rocas. Uma boa notícia para a cidade neste começo de ano, que seja alvissareiro. O novo mercado é.  Pois uma de suas propostas é ser mais um polo gastronômico da cidade, um adjutório para o turismo por estas potiguares. Dali se ver o Potengi, os navios aportando no cais quase defronte. O mar fica mais ao lado, basta atravessar o bairro dos Reis Magos, o Areial, tudo junto. Ribeira, Rocas, Santos Reis, Areial, a mesma geografia, a mesma gente.

O novo mercado fica na avenida Duque de Caxias, que separa a Ribeira das Rocas depois da avenida Silva Jardim, que também serve de divisória entre os dois bairros. Tudo Rocas. Vai chamar-se “Mercado Modelo Público das Rocas Francisca Barros de Morais”, Dona Chiquinha que foi nora e sucessora da comadre Isaura Pereira da Silva, a fundadora da Peixada da Comadre, cujas portas, no Canto do Mangue, ao lado, foram abertas em 1931, lá se vão 85 anos. Hoje a Peixada, comandada pelos filhos e netos de dona Chiquinha funciona na Ponta do Morcego, onde são servidos os mais saborosos pirões do mundo.

Acertou o prefeito em homenageá-la e ao mesmo transformar o mercado no polo gastronômico. O bairro das Rocas já abrigou os mais famosos restaurantes de Natal. Sempre foi um bairro da boa cozinha, derna do tempo do Hotel de Bimoa, o primeiro de Natal, coisa do ano 1870, segundo conta Câmara Cascudo. Ficava na atual Avenida Silva Jardim, a que divide a Ribeira das Rocas. Seu nome de batismo Francisca Generosa, casada com um descendente de francês, Elias Gosset de Bimont. Cascudo acrescenta:

“No Hotel de Bimoa ficavam os deputados provinciais sem relações intimas na Capital, os viajantes comerciais, os ‘passageiros’ do sertão. A Bimoa foi a primeira a servir salada de alface, prato desconhecido e muito recusado. Muita gente ilustre ficava zangada com a ideia de oferecer folhas, como se os fregueses fossem lagartas…”

As Rocas sempre foi um bairro que abrigou durante décadas os melhores e os mais populares restaurantes da cidade. Cito quatro, começando, claro, pela Peixada da Comadre, mais  a Caranguejada do Arnaldo, a Carne de Sol do Lira, a Carne do Marinho. Quatro templos. Por lá se deliciaram de miss Brasil a presidente da República, no meio de artistas, escritores, boêmios, intelectuais, gurmês ou não.  Entre eles, Hermilo Borba Filho, pernambucano, dos grandes escritores brasileiros, romancista, dramaturgo, crítico de teatro, diretor de teatro, ensaísta, jornalista.  Excelente “causeur” e garfo incomparável. Grande brasileiro.

Em algumas das crônicas publicadas nos jornais de Recife,   Hermilo tempera seus textos com as comidas natalenses. A Peixada da Comadre é citada. A Carne de Sol do Marinho, também.  Noitadas pelas Rocas, esticadas pelos cafés, bares e pensões alegres da Ribeira. Hermilo começou a vir a Natal no final dos anos 50, trazido por Meira Pires para dirigir peças montadas pelo Teatro de Cultura de Natal. Foi ele quem lançou Ariano Suassuna (seu colega na Faculdade de Direito)  no teatro, dirigindo depois  sua peça Auto da Compadecida, em São Paulo (1957), ganhando o prêmio de Diretor Revelação da Associação Paulista dos Críticos Teatrais. Escreveu  17 peças teatrais, 7 romances, 5 livros de contos, duas novelas e vários ensaios. Hermilo morreu em Recife, no dia 2 de julho de 1976 aos 79 anos.

A geografia da comida
Vou até a estante e pego “Louvações, Encantamentos e Outras Crônicas”, de Hermilo Borba Filho, livro organizado por Jaci Bezerra, Juareiz Correya e Leda  Alves ( mulher de Hermilo). São crônicas, na maioria publicadas no Diário de Pernambuco. O livro é datado de 2000, Editora Bagaço, do Recife. Folheio suas páginas  até me reencontrar com a crônica com o título “A boa comida”, publicada  no dia 5 de outubro de 1972. Transcrevo alguns trechos, começando pelo começo:

“- Cada um tem a sua geografia culinária, cada um os seus gostos, as suas preferências, os seus pratos. Confesso que como de tudo, isto é, comia. De dois anos para cá cortaram-me as sensuais gorduras, o libidinoso açúcar, as voluptuosas massas, o ardente sal, as excitantes frituras. Vivo, assim, um pouco de recordações e bastante de certo pratos que a minha sabedoria conseguiu descobrir.

– Desprezo os doces e os bolos como requinte (um desprezo obrigatório) e me lanço aos sólidos, à comida de panela. Sou um grande frequentador de restaurante mas prefiro de longe a excelente comida caseira. Sempre fui assim, acostumado aos lombos e aos bifes de Mãe Néa, à galinha guisada de Mamãe Júlia (galinhas cortesãs, gordas, enxundiosas, de capoeira, e não essas galinhas anêmicas de granja que por aí andam sem gosto e sem chama), à buchada de Quixaba, a sogra do meu irmão Ruy, aos pitus do rio Uma, ensopados, da minha irmã Violeta, aos pernis de Nina, a mulher do meu irmão Luís, a uma certa farofa de queijo com costeleta de porco de uma certa senhora-de-engenho perto do São Benedito a poucas léguas da Usina Florestal (…)

– Tenho comido por este mundo a fora: em Natal,  no Pouso do Tetéu, uma boa jia; no Marinho, uma excelente carne-de-sol daquelas que mais se parecem com um lombo-paulista; na Comadre, uma peixada como não há outra, numa certa casa de família que serve a uns poucos lá para as duas da madrugada, só conhecida de Woden Madruga, uma excelente galinha torradas; em João Pessoa,  a sopa de cabeça-de-peixe do Elite, e o ensopado de caranguejo a poucos quilômetros entre essa cidade e Cabedelo; em Maceió, no Bar das Ostras, a geladeira é a própria lagoa, enormes ostras e camarões, uma excelente carapeba, tamanhos sururus.

– O Gambrinus, em Lisboa, me dá os pratos mais deliciosos, sempre como resistência o bacalhau e o vinho do conhecimento do ‘maitre’. Em Paris, descubro alguns, depois de muito penar nas comidas sem tempero, principalmente um deles, na rue Condordet, onde me vicio na ‘bovillabaisse’, aquela sopa onde nadam crustáceos, mariscos, peixes, provocando-me gozos semelhantes a orgasmos. ”
Notinha de WM: A “casa de família” que servia a galinha torrada, citada por Hermilo, era a “Galinha da mãe de Chico”, outro templo culinário., entre as Rocas e o Areial.

O amigo
Grande Hermilo Borba Filho, o gourmet e o glutão, o brilhante homem de letras que me honrou com sua amizade, rapazinho besta metido em jornal e querendo ser ator de teatro. Na estante vou afagando os dorsos de alguns de seus romances, “Sol das Almas”, “Margem das Lembranças”, “A Porteira do Mundo”, “O Cavalo da Noite”, “Deus no Pasto”, os livros de contos “O general e está pintando”, “Sete dias a cavalo”, “As meninas do sobrado”, “Os ambulantes de Deus” (novela). Mais:  “Sobrados e Mocambos”, peça de teatro baseada no livro de Gilberto Freyre”, “Fisionomia e Espírito do Mamulengo”, “História do Espetáculo” (que é a história do Teatro), e “Henry Miller – Vida e Obra”, ensaio biográfico.

Abro este “Henry Miller”, que foi publicado em 1968 pela Editora José Álvaro, do Rio de Janeiro. Está lá, em letra firme, o autógrafo do autor: “A Woden, por todas as futuras galinhas torradas. Hermilo – Rio, set. – 68”.

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