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Zé Areia, domador da surpresa

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Sanderson Negreiro – Escritor

Uma nascem com vocação de ator, espargindo a alegria circense, outros carregam o dom místico e irreversível de identificarem Deus nos mínimos atos de sua existência. São os santos. Outros se aperfeiçoam na arte de malbaratar o tempo e perseguir a vida do próximo: são os maledicentes. Uns renascem com o destino de ser milionários, e no primeiro lance da Bolsa, são os novos Midas; amarram a vida ao cais da fortuna e são os próprios singradores da felicidade, até que a morte os desampare. Alguns só sabem ser tristes, ou nem alegres nem tristes. São os poetas, como cantava Cecília Meireles. Compõem alguns sonetos, arrumam algumas trovas e descansam em paz. Uns perseguem o Poder e se tornam cruéis, vaidosos, tonitruantes Como Júpiter no Olimpo. Outros não querem nem isso: realizam-se como bajuladores totalitários. São capazes de todas as vênias, de amaciar todos os tapetes, de se desmoralizarem até a última baixeza, mas não querem perder o lugar da fila, isto é: a vaga mais próxima para beijar a mão dos poderosos do dia. Resultado: conheci um sujeito que tinha somente uma alegria na vida: a de subir em coqueiro. Para ele um coqueiro galgado valia por dez Torres Eiffel. No reino dos céus cabem todos: os bons, os ingênuos e os silenciosos, os bravos e os tímidos. Um deles era Zé Areia, um ser humano muito pobre, mas rico de instintiva sabedoria que assinala, quase sempre, aventuras excêntricas.

Esse que se foi, há tantos anos, morreu com um livro de poemas na mão. Durante os dias e noites de um carnaval bem-comportado, foi rei, pirata e jardineiro, mesmo pobre como Jó e rico como Salomão, pisava a areia solta da praia, tinha a geografia dos becos e ruas tortuosas da Ribeira como verdadeiro conhecedor da psicologia humana. Sem compromissos nem remissões, gordo igual a um Sancho Pança tropical, não foi herói de nada, senão um enternecedor participante dessa tragédia humana, em que muitos reconhecem só comédia. Ou como era para ele: um palco iluminado que, de repente, se apagam todas as luzes.

Um dia, ao entrevistar-lhe, disse-me que “já amaciei o pedal da vida”. Perguntei-lhe:

– Quer dizer que já conseguiu equilibrar a embreagem com o acelerador?

– Exatamente. Agora, erro quando uso o freio.

Sempre escrevi muito sobre ele, apanhando histórias que Veríssimo de Melo guardava de sua vida em comovedora forma de simpatia. Tinha já um riso gasto, a cara anônima, um rictus de ter conhecido o coração da vida com fácil identificação. Parecia responder: “Sofrer passa, o ter sofrido nunca passa”. Outras vezes, ao dobrar de um esquina da Ribeira, esquina profunda, dei de cara com ele.  Cada dia mais velho, mais empolgado com o esquecimento, recitou-me a última loa, tendo como tema conhecido cidadão de Típica Família Potiguar. Mal terminara a quase improvisação. O cidadão citado passa por nós. Só houve uma saída:

– Isso, sim, é que é mera coincidência: Deus marca para não perder de vista.

Zé Areia conduzia sempre uma pasta escura e desgarrada debaixo do braço. Ali residiam poemas e trovas, bônus e bilhetes de loteria, e uma misteriosa navalha que, a muita insistência minha, revelou que aquele instrumento afiadíssimo serviu-lhe muito para fazer a barba de americanos, no tempo da guerra, aqui e em Fernando de Noronha. Ele era capaz de um bom-dia cheio de humor e forte traço de legitimidade. Desapareceu como a neve cai nos longos campos do sul: pedindo ternura e perdão à mulher amada. Seu reino ia das cercanias das Rocas à coditianidade febril da Ribeira de então. Não deixou dinheiro nem glória, nem adoradores de sua biografia comandada pela surpresa. Apenas fez da vida uma diminuta curva do caminho, onde cabiam todos os risos, todas as piadas, toda a bonomia do mundo. Ao morrer, Zé Areia deixou no ar a impressão digital de uma última quadrinha, que se esvaneceu no tempo. A que serve de carteira de identidade lá para o Outro Lado. De si tinha somente a solidão; no seu bornal levava o emblema do despojamento, o fácil encontro com a alegria, a capacidade de transfigurar a realidade num lance jocoso, lúdico de insensatez.

Tudo isso fazia dele um jogral de Deus, que nunca desrespeitou a Vida, sendo mau, vingativo ou desonesto. Santo também não é isso? Sua viagem para muito longe foi a 1/2/1972.

 Chovia em Natal, quando levado para o cemitério do Alecrim. Dizem que Albimar Marinho, provedor poético de defuntos, reapareceu e gritou: “Alto lá! Para este morto requeiro um habeas-corpus preventivo”. Como tantas outras vezes, Albimar mostrava-se um rábula de predicados candentes. Mas não houve jeito: a sentença de Zé Areia já havia transitado em julgado.

As histórias de Zé Areia não podem ficar esquecidas. A primeira relaciona-se com um cachorro que o famoso boêmio pretendia vender  em uma rifa. Foi ele até ao escritório de Luíz de Barros. Era PHD em rifa.

– Seu Luís, tenho aqui um cachorrinho. O sr. não quer comprar? – Não, Zé. Quero não.

– Mas o sr. devia ajudar ao cachorrinho e a mim.

– Olha, Zé, eu estou ocupado demais. Vá vender o animal ali, a Fulano. Esse fulano reconhecidamente não gostava de Zé Areia que, por sua vez, sabia da prevenção gratuita. Contudo, Zé foi.

– Fulano, compra aqui um cachorrinho. – Pára, pára. Vá vender a seu Luiz, que gosta do que não presta. Zé ficou calado, deu meia-volta, chegou na porta de saída, cabisbaixo, levantou a cabeça e falou;

-É por isso que seu Luiz gosta de você, né?

A outra foi com Mussolini Fernandes. Novamente uma rifa, sendo desta vez de um relógio. A cena se passa na Tribuna do Norte, onde Mussolini trabalhava. Zé vem de mansinho e exclama:

– Mussolini, compra aqui um reloginho.

– Lá quero relógio, Zé Areia! Não adianta que não quero.

Zé volta para sair. Pára e retorna:

– Dá uma ajuda, Mussolini. Compra o reloginho.

– Zé Areia, para que eu quero um relógio? Lá em casa eu tenho relógio, minha mulher tem relógio, meu cunhado tem relógio, minha mãe tem relógio, meu pai tem relógio. Logo…

Zé vai embora, mas ao chegar à calçada, olha para trás e diz alto para Mussolini ouvir- Isso é uma casa ou uma relojoaria?

Dona Maria Sacramento morava no Areal. Era quem preparava a melhor galinha ao molho pardo. Zé Areia ganhou dinheiro em sua famosa rifa e foi experimentar o famoso prato, especialíssimo. E perguntou: – Dona Maria, a sra. faz a melhor galinha de Natal e não gosta de comer a “penosa”? – Gosto não, Zé. E este: “Ah raça desunida…”

Lembro bem das últimas palavras da derradeira entrevista que fiz com ele, há mais de quarenta anos. Filosofava assim o gordo passador de rifas: “Na vida tudo é misterioso. Somos todos uns ignorantes. Afora Cascudinho…”

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